segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

As Grutas


O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. E tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superficie das águas lisas como um chão.
As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadiIha da qual os pescadores dizem ser apenas água.
Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.
Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.
O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.
Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.


Sophia de Mello Breyner Andresen in Livro Sexto, 1962


O minotauro



Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar

Há uma rápida dança que se dança em frente
[de um toiro
Na antiquíssima juventude do dia
Nenhuma droga me embriagou me escondeu
[me protegeu
Só bebi retsina tendo derramado na terra a
[parte que pertence aos deuses

De Creta
Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo
[vivo das ervas
Para inteiramente acordada comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como Ulisses
Caminhei na luz nua

Devastada era eu própria como a cidade em
[ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior do mar
Porque pertenço à raça daqueles que
[mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo pedra a pedra
[anémona a anémona flor a flor
E o mar de Creta por dentro é todo azul
Oferenda incrível de primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro navega

Pinturas ondas colunas e planícies

Em Creta
Inteiramente acordada atravessei o dia
E caminhei no interior dos palácios veementes
[e vermelhos
palácios sucessivos e roucos
Onde se ergue o respirar da sussurrada treva
E nos fitam pupilas semi-azuis de penumbra e
[terror
Imanentes ao dia –
Caminhei no palácio dual de combate
[e confronto
Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos [matinais


nenhuma droga me embriagou me escondeu
[me protegeu
O Dionysos que dança comigo na vaga não se
[vende em nenhum mercado negro
Mas cresce como flor daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se perde e se desune e
[se reúne
E esta é a dança do ser

Em Creta
Os muros de tijolo da cidade minóica
São feitos com barro amassado com algas
E quando me virei para trás da minha sombra
Vi que era azul o sol que tocava o meu ombro

Em Creta onde o Minotauro reina atravessei
[a vaga
De olhos abertos inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente da solenidade das [coisas –
Porque pertenço à raça daqueles que
[percorrem o labirinto,
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra




ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Dual". In:_____. Obra poética. SOUSA, Carlos Mendes de (org.). Alfragide: Caminho, 2001. O Minotauro

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

arte poética V


Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas — coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:
A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.

(Lido na Sorbonne, em Paris, em dezembro de 1988, por ocasião do encontro intitulado Les Belles Étrangères.)


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 6 de abril de 2017

 Afinal
 Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.   
  Sentir tudo de todas as maneiras.   
  Sentir tudo excessivamente,   
  Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas   
  E toda a realidade é um excesso, uma violência,   
  Uma alucinação extraordinariamente nítida   
  Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,   
  O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas   
  Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.   
   
  Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,   
  Quanto mais personalidade eu tiver,   
  Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,   
  Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,   
  Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,   
  Estiver, sentir, viver, for,   
  Mais possuirei a existência total do universo,   
  Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.   
  Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,   
  Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,   
  E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.   
   
  Cada alma é uma escada para Deus,  
  Cada alma é um corredor-Universo para Deus,   
  Cada alma é um rio correndo por margens de Externo   
  Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.   
   
  Sursum corda!  Erguei as almas!  Toda a Matéria é Espírito,   
   
  Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos   
  Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho   
  E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!   
  Sursum corda!  Na noite acordo, o silêncio é grande,   
  As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam   
   
  Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos   
  Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.   
  Sursum corda!  Acordo na noite e sinto-me diverso.   
  Todo o Mundo com a sua forma visível do costume   
  Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,   
   
  Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.   
   
  Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço   
  Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!   
  Mãe verde e florida todos os anos recente,   
  Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,   
  Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis   
  Num rito anterior a todas as significações,   
  Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!   
  Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,   
  Grande voz acordando em cataratas e mares,   
  Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,   
  Em cio de vegetação e florescência rompendo   
  Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso   
  A tua própria vontade transtornadora e eterna!   
  Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,   
  Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,   
  Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,   
  Que perturba as próprias estações e confunde   
  Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!   
   
  Sursum corda!  Reparo para ti e todo eu sou um hino!   
  Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima   
  Volteia serpenteando, ficando como um anel   
  Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,   
  Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.   
  Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente   
  Meu coração a ti aberto!   
  Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,   
  Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,   
  Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,   
   
  Sou um monte confuso de forças cheias de infinito   
  Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,   
  A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une   
  E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim   
  Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,   
  Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira   
  Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,   
  Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.   
   
  Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.   
  Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,   
  No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo   
  Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos   
  Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.   
   
  Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,   
  Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo   
  De chamas explosivas buscando Deus e queimando   
  A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,   
  A minha inteligência limitadora e gelada.   
   
  Sou uma grande máquina movida por grandes correias   
  De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,   
  O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,   
  E nunca parece chegar ao tambor donde parte ...   
   
  Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito   
  Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,   
  Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,   
  Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço   
  Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.   
   
  Dentro de mim estão presos e atados ao chao   
  Todos os movimentos que compõem o universo,   
  A fúria minuciosa e dos átomos,   
  A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,   
  A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,   
   
  A chuva com pedras atiradas de catapultas   
  De enormes exércitos de anões escondidos no céu.   
   
  Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio   
  De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.   
  Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,   
  Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,   
  Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,   
  Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,   
  Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,   
  Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,   
  Sobrevive-me em minha vida em todas as direções! 

Álvaro de Campos

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...