segunda-feira, 29 de agosto de 2011

sombra boa

                                                                    V


Esses lagartos curimpãpãs têm índole tropical. 
Tornam-se no mês de agosto amortecidos e idiotas
Ao ponto que se deixam passar por cima como pedras.
Ao ponto que se deixam atravessar por caminhões.
Aparecem de sempre esses lagartos encostados em
muros decadentes -
Onde se criam devassos.
Bem assim por exemplo:
Formiga puxou um pedaço de rio para ela e tomou
banho em cima.
Lagarto curimpãpã assistiu o banho com luxúria no
olho encapado.
Depois se escondeu debaixo de um tronco .
(Tem um tipo de árvores que dão pros lagartos)
Alguns atravessam invernos que os pássaros morrem.
Borboletas translúcidas quedam estancadas no tronco
das árvores -
Se enxergam por perto os curimpãpãs.
Mas todos sabemos que esses lagartos curimpãpãs são
pouco favorecidos de horizontes.
Enxergam tão pequeno que às vezes pensam que a
gente é árvore e nem se mexem.
Nos barrancos há riscos de suas manguaras.
E se estão em aflição de espírito – combustam!
(Essas notícias foram colhidas por volta de 1944,
entre os índios chiquitanos, na Bolívia.) 
Águas estavam iniciando rãs.





manoel de barros em o livro das ignorãças

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

poemas aos homens do nosso tempo

                                                       X

Amada vida:
Que essa garra de ferro
Imensa
Que apunhala a palavra
Se afaste
Da boca dos poetas.
PÁSSARO-PALAVRA
LIVRE
VOLÚPIA DE SER ASA
NA MINHA BOCA.
Que essa garra de ferro
Imensa
Que me dilacera
Desapareça
Do ensolarado roteiro
Do poeta.
PÁSSARO-PALAVRA
LIVRE
VOLÚPIA DE SER ASA
NA MINHA BOCA.
Que essa garra de ferro
Calcinada
Se desfaça
Diante da luz
Intensa da palavra.
PALAVRA-LIVRE
Volúpia de ser pássaro
Amada vertiginosa.
Asa.


hilda hilst

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

nada, esta espuma



Por afrontamento do desejo
Insisto na maldade de escrever
Mas não sei se a deusa sobe à superfície
Ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
Quero tanto os seios da sereia.


ana cristina cesar

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

primeiro eu quero falar de amor



meu amor se esparrama na grama
meu amor se esparrama na cama
meu amor se espreguiça
meu amor deita e rola no planeta.



chacal



sexta-feira, 12 de agosto de 2011

ode descontínua e remota para flauta e oboé. de ariana para dionísio.



                                                                   VI
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga
Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta
Quando tu, Dionísio, não estás.



hilda hilst

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

odes mínimas

                                                                  XXVII
  
Me cobrirão de estopa
Junco, palha,
Farão de minhas canções
Um oco, anônima mortalha
E eu continuarei buscando
O frêmito da palavra.
E continuarei
Ainda que os teus passos
De cobalto
Estrôncio
Patas hirtas
Devam me preceder.
Em alguma parte
Monte, serrado, vastidão
E Nada,
Eu estarei ali
Com minha canção de sal.

  

hilda hilst 

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

sombra boa

                                                                              XI                           


Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3
fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?).





manoel de barros

do desejo

                                                                V


Águas. Onde só os tigres mitigam a sua sede.
Também eu em ti, feroz, encantoada
Atravessei as cercaduras raras
E me fiz máscara, mulher e conjetura.
Águas que não bebi. Crespusculares. Cavas.
Códigos que decifrei e onde me vi mil vezes
Inconexa, parca. Ah, toma-me de novo
Antiqüíssima, nova. Como se fosses o tigre
A beber daquelas águas.





hilda hilst

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

cantares dos sem-nome e de partida

                                                                             III


Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso 
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.





hilda hilst

terça-feira, 2 de agosto de 2011




Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro - e também certa não - fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah! ...


caio fernando

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...