sábado, 30 de abril de 2011

a felicidade





A felicidade, o que é a felicidade? (A palavra
não me deixa feliz, diga-se de passagem). Eu diria
que é simplesmente ir contigo pela mão,
parar um instante porque um odor nos chama,
uma luz nos percorre, algo que nos aquece
por dentro e nos faz pensar que não é a vida
que nos leva, mas antes que a vida somos nós
e que viver é isso, simplesmente isso.





josé antonio muñoz rojas

quinta-feira, 28 de abril de 2011

declaração de amor




Minha flor minha flor minha flor.
Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro.
Minha peônia.
Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão.
Minha gérbera.
Minha clívia.
Meu cimbídio.
Flor flor flor.
Floramarílis. floranêmona. florazálea. clematite minha.
Catléia delfínio estrelítzia.
Minha hortensegerânea.
Ah, meu nenúfar. rododendro e crisântemo e junquilho meus. meu ciclâmen. macieira-minha-do-japão.
Calceolária minha.
Daliabegônia minha. forsitiaíris tuliparrosa minhas.
Violeta... amor-mais-que-perfeito.
Minha urze. meu cravo-pessoal-de-defunto.
Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.



drummond

quarta-feira, 27 de abril de 2011

a meio pau



Queria mais um amor. Escrevi cartas,
remeti pelo correio a copa de uma árvore,
pardais comendo no pé um mamão maduro
- coisas que não dou a qualquer pessoa -
e mais que tudo, taquicardias,
um jeito de pensar com a boca fechada,
os olhos tramando um gosto.
Em vão.
Meu bem não leu, não escreveu,
não disse essa boca é minha.
Outro dia perguntei a meu coração:
o que há durão, mal de chagas te comeu ?
Não, ele disse: é desprezo de amor.







adélia prado

segunda-feira, 25 de abril de 2011

elogio ao esquecimento

Bom é o esquecimento!
Senão como se afastaria o filho
da mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros
e o impede de experimentá-la.

Ou como deixaria o aluno
o professor que lhe deu o saber?
Quando o saber está dado
o aluno tem de se pôr a caminho.

Para a velha casa
mudam-se os novos moradores.
Se os que a construíram ainda lá vivessem
a casa seria pequena demais.

O forno esquenta. Já não se sabe
quem foi o oleiro. O plantador
não reconhece o pão.

Como se levantaria pela manhã o homem
sem o deslembrar da noite que desfaz o rastro?
Como se ergueria pela sétima vez
aquele derrubado seis vezes
para lavrar o chão pedregoso, voar
o céu perigoso?

A fraqueza da memória
dá força ao homem.



bertolt brecht

domingo, 24 de abril de 2011



Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de
sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus
seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul
E descobriu que uma casa vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só serve pra poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,
envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros
e tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
porque fez amizade com muitas borboletas.







manoel de barros

almas perfumadas


Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta. De sol quando acorda. De flor quando ri. Ao lado delas, a gente se sente no balanço de uma rede que dança gostoso numa tarde grande, sem relógio e sem agenda. Ao lado delas, a gente se sente comendo pipoca na praça. Melando os dedos com algodão doce da cor mais doce que tem pra escolher. O tempo é outro. E a vida fica com a cara que ela tem de verdade, mas que a gente desaprende de ver.
Tem gente que tem cheiro de colo de Deus. De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul. Ao lado delas, a gente sabe que os anjos existem e que alguns são invisíveis. 

Ao lado delas, a gente se sente chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo. Sonhando a maior tolice do mundo com o gozo de quem não liga pra isso. Ao lado delas,pode ser abril, mas parece manhã de Natal do tempo em que a gente acordava e encontrava o presente do Papai Noel.
Tem gente que tem cheiro das estrelas que Deus acendeu no céu e daquelas que conseguimos acender na Terra. Ao lado delas, a gente não acha que o amor é possível, a gente tem certeza. Ao lado delas, a gente se sente visitando um lugar feito de alegria. Recebendo um buquê de carinhos. Abraçando um filhote de urso panda. Tocando com os olhos os olhos da paz. Ao lado delas, saboreamos a delícia do toque suave que sua presença sopra no nosso coração.


...

ana jácomo

quarta-feira, 20 de abril de 2011

sombra boa



                                                                           IV


Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Língua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas. 







manoel de barros em o livro das ignorãças

segunda-feira, 18 de abril de 2011

solilóquio sem fim e rio revolto



Solilóquio sem fim e rio revolto -
mas em voz alta, e sempre os lábios duros
ruminando as palavras, e escutando
o que é consciência, lógica ou absurdo.

A memória em vigília alcança o solto
perpassar de episódios, uns futuros
e outros passados, vagos, ondulando
num implacável estribilho surdo.

E tudo num refrão atormentado:
memória, raciocínio, descalabro...
Há também a janela da amplidão;

e depois da janela esse esperado
postigo, esse último portão que eu abro
para a fuga completa da razão.





jorge de lima

domingo, 17 de abril de 2011

doralice

Doralice eu bem que lhe disse, Amar é tolice, É bobagem, ilusão
Eu prefiro viver tão sozinho, Ao som do lamento do meu violão
Doralice eu bem que lhe disse, Olha essa embrulhada, Em que vou me meter
Agora amor, Doralice meu bem, Como é que nós vamos fazer?
Um belo dia você me surgiu, Eu quis fugir mas você insitiu
Alguma coisa bem que andava me avisando, Até parece que eu estava adivinhando
Eu bem que não queria me casar contigo, Bem que não queria enfrentar, esse perigo Doralice
Agora você tem que me dizer, Como é que nós vamos fazer? 

dorival caymmi / antonio almeida

sexta-feira, 15 de abril de 2011

foi para ti que criei as rosas



Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.




eugenio de andrade

terça-feira, 12 de abril de 2011

incenso fosse música



isso de querer ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além.


leminski - in distraídos venceremos.

cantares dos sem-nome e de partida




Que este amor não me cegue nem me siga.

E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.
(I)


hilda hilst

viramundo



Sou viramundo virado
Nas rondas das maravilhas
Cortando a faca e facão
Os desatinos da vida 
Gritando para assustar 
A coragem da inimiga 
Pulando pra não ser preso 
Pelas cadeias da intriga 
Prefiro ter toda a vida 
A vida como inimiga 
A ter na morte da vida 
Minha sorte decidida 
Sou viramundo virado 
Pelo mundo do sertão 
Mas ainda viro este mundo 
Em festa, trabalho e pão 
Virado será o mundo 
E viramundo verão 
O virador deste mundo 
Astuto, mau e ladrão 
Ser virado pelo mundo 
Que virou com certidão 
Ainda viro este mundo 
Em festa, trabalho e pão.



Gilberto Gil e J. C. Capinam

segunda-feira, 11 de abril de 2011

o seu santo nome



Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.





drummond

sexta-feira, 8 de abril de 2011

frieze beethoven - gustave klimt



Em 1902, Klimt criou uma de suas mais famosas obras, o Friso de Beethoven, para uma exposição do movimento Secessão. Todo o show foi uma homenagem a Ludwig van Beethoven. Trinta e quatro metros de largura e dois metros de altura é esta opulenta, ornamental "sinfonia", nas quais Klimt procurou imortalizar a "Nona" de Beethoven e sua interpretação de Richard Wagner.




- gênios flutuantes, o anseio de felicidade simbolizada pela figura feminina.




- a humanidade sofredora, casal ajoelhado e de pé a garota atrás deles: os seus fundamentos para o cavaleiro da armadura brilhante como a força motriz externa, a ambição segurando uma coroa de vitória, e a simpatia com as mãos ao rosto. ambas como motivação interna impelindo-o a assumir a luta pela felicidade.



- gênios flutuantes


- as forças hostis, o gigante Typhoeus e suas filhas, as três górgonas. a doença, a loucura e a morte como máscaras acima da cabeça gorgon  / libertinagem, lascívia e intemperança de saia azul ornamentada com aplicações de madre-pérola bronze, anéis.  



- as asas azuis de Typhoeus e seu apêndice de cobra.


- gênios flutuantes, o anseio de felicidade encontra apaziguamento na poesia (figura com a harpa).


- segmento vazio, este é o lugar onde amplas aberturas na parede revelaram uma visão da estatura de Beethoven na exposição de 1902.


- a arte nos leva a uma esfera ideal, o único lugar onde podemos encontrar alegria pura, pura felicidade, amor puro (as cinco mulheres - ode à alegria). - coro de anjos no paraíso "Alegria, tu reluzente centelha divina. Este beijo ao mundo inteiro" celebração de cena com o coro feminino e casal se abraçando.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

quando amanhecer


Quando amanhecer será
Para iluminar você
Vai anoitecer o dia
Se não vier
Mas se for presente
Tudo iluminará
Meu humor, meu coração
Como deve ser se
Ser como Deus quer for
Milagre, resignação
Roupa colorida
Alegria às vistas,
indescência, indiscrição
Seu cheiro me achando
Minh'alma perdida
Direi que é céu no chão
Quando anoitecer será
Para te fazer dormir
Estrelas que nem brilhantes
Pra te vestir
Vai saber que Deus fez
As damas da noite
Preparando o seu buquê
Como vai dizer não
Se tudo o que eu vejo
Está aqui pra te servir
A mais bela roupa
Roupa de ir à festa
Coloquei pra te esperar
Disco na vitrola
Uma vela acesa
E a lua mais cheia
Quando o sol nascer será
Para desenhar você
Ou será que virá pro sol nascer
vanessa da mata

quarta-feira, 6 de abril de 2011

procelária


é vista quando há vento e grande vaga
ela faz o ninho no rolar da fúria 
e voa firme e certa como bala
as suas asas empresta à tempestade
quando os leões do mar rugem nas grutas
sobre os abismos passa e vai em frente
ela não busca a rocha, o cabo, o cais
mas faz da insegurança a sua força
e do risco de morrer, seu alimento
por isso me parece a imagem justa
para quem vive e canta no mau tempo.


Sophia Andresen

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...