segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

deus sorrindo na varanda

o quintal de deus é o céu.
um paraíso em uma ilha.
alcançaremos quando formos náufragos.

aguaçal encoberto de dor,
nascituro rompendo em harmonia.

a eternidade – deus sorrindo na varanda.

bárbara lia

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

néon


luz descerrada e crua
que não rodeia as coisas
mas as desventra
de fora para dentro

espaço de uma insônia sem refúgio

tudo é como um interior violado
como um quarto saqueado

luz de máquina e fantasma

sophia andresen

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

amavisse

                                                                   III

de uma fome de afagos, tigres baços
vêm se juntar a mim na noite oca.
e eu mesma estilhaçada, prenhe de solidões
tento voltar à luz que me foi dada
e sobreponho as mãos nas veludosas patas.
                               
de uma fome de sonhos
tento voltar àquelas geografias
de um Fazedor de versos e sua estrada.
aliso os grandes dorsos.
memorizo este ser que me sou

e sobre os fulcros dentes, ali
é que passeio e deslizo a minha fome.

então se aquietam de pura madrugada
meus tigres de ferrugem. As garras recolhidas
numa agonia de ser, tão indivisa
como se mesmo a morte os excluísse.

hilda hilst

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

soneto sonhado


meu tudo, minha amada e minha amiga,
eis, compendiada toda num soneto,
a minha profissão de fé e afeto,
que à confissão, posto aos teus pés, me obriga.

o que n'alma guardei de muito antiga
experiência foi pena e ansiar inquieto.
gosto pouco do amor ideal objeto
só, e do amor só carnal não gosto miga.

o que há de melhor no amor é iluminância,
mas, ai de nós! não vem de nós. Viria
de onde? Dos céus?... Dos longes de distância?...

não te prometo os estos, a alegria,
a assunção...Mas em toda circunstância
ser-te-ei sincero como a luz do dia.

manuel bandeira

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

sim


sim.
todos os poemas
são de amor
pela rima,
pelo ritmo,
pelo brilho
ou por alguém,
alguma coisa
que passava
na hora
em que a vida
virava palavra.

alice ruiz

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

reflexivo

o que não escrevi, calou-me.
o que não fiz, partiu-me.
o que não senti, doeu-se.
o que não vivi, morreu-se.
o que adiei, adeu-se. 

affonso romano de sant'anna

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

o pastor amoroso


O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.


alberto caeiro, fp.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

roda d'água


dentro de mim
concomitantemente nasce um poema
enquanto um outro morre
moto perpétuo
roda d'água que move a lâmina
que faz serrar a pedra (bruta)
e faz brotar a flor.

nydia bonetti

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

veneza


reflexo da lua nas águas
serenas
luzes mansas nas portas
pequenas
sombra amiga nas gôndolas ermas
cansadas
encontro de almas lindas e trêmulas
amadas
um vento quieto desce
solene
e o mar agradece:
ti voglio bene...
ti voglio bene...

fabio sexugi

domingo, 14 de outubro de 2012

propósito


viver pouco mas
viver muito
ser todo o pensamento
toda a esperança
toda a alegria
ou angústia – mas ser

nunca morrer
enquanto viver

eunice arruda

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

perplexidade


por que
baixando o sódio e o potássio,
o ferro, o cálcio e o iodo,
cessa o meu criar?
e o poema,
que sódio, potássio, ferro, cálcio e iodo não é,
por que ele aborta em silêncio?


maria helena nery garcez

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

raio


preparo
afiro a fera
saco no ato papel almaço
caneta tiro estilhaço
pólvora e tinta
explode luz estrela rara
pinto o texto em pouco espaço

tempo
esse deus escasso
junta tua pressa
num átimo de prece
para ter nervos de aço

precipita-se então o anjo dissimulado
sobre tuas tranças destrancadas
e trespassa-te com a palavra nua
encubada
breve
puta
poesia que faço.

carlos edu

sábado, 22 de setembro de 2012

terça-feira, 18 de setembro de 2012

boemia


hoje a lua é verso
de loucos, de putas
e de poetas

hoje a lua é verso
prazer bêbado
regaço


luiz otavio

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

poemas aos homens do nosso tempo



                                                                                    IX

ao teu encontro, Homem do meu tempo,
e à espera de  que tu prevaleças
à rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
e convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
as coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
minha própria rudeza e o difícil de antes,
aparências, o amor dilacerado dos homens
meu próprio amor que é o teu
o mistério dos rios, da terra, da semente.
te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

compaixão e ternura e paz na Terra
se ainda encontrasse em ti, o que te deu.


hilda hilst

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

as mãos



com mãos se faz a paz se faz a guerra.
com mãos tudo se faz e se desfaz.
com mãos se faz o poema - e são de terra.
com mãos se faz a guerra - e são a paz.
 
com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
 
e cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
folhas que vão no vento: verdes harpas.
 
de mãos é cada flor, cada cidade.
ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade. 

manuel alegre

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

poema



cantos ou gritos
de almas milenares
manifesto do verbo: - o do princípio
que multiplica e se renova
em vozes tantas
quantas
suporta o universo
[...ouvidos de silêncio
olhos de estrela
a ler-nos, versos que somos
tomos (sagrados)
do grande livro: - o da palavra viva.

nydia bonetti

terça-feira, 24 de julho de 2012

tão bom aqui



Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui para rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
Tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestionamos elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
O de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
Em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
Alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
Refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
Eu nada sei de mim.


 adélia prado

segunda-feira, 23 de julho de 2012

passeio


                                                                     8
Vereis um outro tempo estranho ao vosso.
Tempo presente mas sempre um tempo só,
Onipresente.
A dimensão das ilhas eu não sei.
Será como pensardes ou como é
Vossa própria e secreta dimensão.
Às vezes pareciam infinitas
De larguras extremas e tão longas
Que o olhar desistia do horizonte
E sondava: ervas, água
Minúcias onde o tato se alegrava
Insetos, transparências delicadas
Tentando o vôo quase sempre incerto.

O peito era maior que o céu aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito inquieto
É olhar ao redor como quem vê
E silenciar também como quem ama.

Éramos muitos? Ah, sim
Eram muitos em mim.
O perigo maior de conviver era o perigo de todos.
Nosso Deus era um Todo inalterável, mudo
E mesmo assim mantido. Nosso pranto
Continuadamente sem ouvido
Porque não é missão de divindade
Testemunhar o pranto e o regozijo.

O que esperais de um Deus?
Ele espera dos homens que O mantenham vivo.

E os verdes, os azuis, o chumbo delicado
De umas tardes, a pureza das aves
Os peixes de verniz
Na abertura mais funda de umas águas.

(...)

- exercícios para uma trajetória poética do ser (1963-1966)
hilda hilst

segunda-feira, 16 de julho de 2012



Bordei um segredo pra você. Um daqueles bonitos, de brilhinho agudo de areia no sol. É que já disse muita coisa, mas ainda queria um segredo para você. Queria um segredo bonito para termos juntos porque, quando eu era pequena, pensava que amigo era quem contava e escutava segredo. Quem tinha um segredo junto com alguém era amigo do alguém. E o segredo era a coisa dos dois, que os dois guardavam juntos. Tenho um segredo com você. Mais que segredo de amigo. Segredo de sentir as coisas escuras e com um brilhinho pequeno de areia molhada no sol. Segredo que não é nem de palavra, mas que você cuida comigo e guarda pequenininho numa caixinha. E ninguém pergunta o que é porque sabem que segredo assim, não se conta, não se mostra, não é de ver nem é de palavra. Mas só de olhar já se sabe que nós dois temos um segredo de silêncio.

autor desconhecido


amar cria raiz, sim. cria, independentemente de ser verbalizado. basta sentir o amor para que fiquemos dependentes dele, uma dependência boa, daquilo que nos faz sentir vivos.

martha medeiros

sábado, 7 de julho de 2012

sintonia para pressa e presságio


escrevia no espaço.
hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

leminski

ditirambo


meu amor me ensinou a ser simples
como um largo de igreja
onde não há nem um sino
nem um lápis
nem uma sensualidade 

oswald de andrade

domingo, 17 de junho de 2012

cantares de perda e predileção


                                                    XXIII


Eu amo Aquele que caminha
Antes do meu passo
É Deus e resiste.

Eu amo a minha morada
A Terra triste.
É sofrida e finita
E sobrevive.

Eu amo o Homem-luz
Que há em mim.
É poeira e paixão
E acredita.
Amo-te, meu ódio-amor
Animal-Vida.
És caça e perseguidor
E recriaste a Poesia
Na minha Casa.


hilda hilst

quinta-feira, 14 de junho de 2012

motivo




Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.


cecília meirelles

quarta-feira, 30 de maio de 2012

ode descontínua e remota para flauta e oboé - de ariana para dionísio

                                                  canção V

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio
Se me amas, podes dizer que não.
Pouco me importa
ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã.

A mim me importa, Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido

E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria


E no meu quarto se faz verbo de amor


hilda hilst

quinta-feira, 24 de maio de 2012

prelúdios intensos para os desmemoriados do amor

                                                                                                    I

Toma-me. A tua boca de linho
sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, 

ANTES
Antes que a carnadura se

desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha

morte, toma-me
Crava a tua mão, respira

meu sopro, deglute
Em cadência minha escura

agonia.
Tempo do corpo este tempo,
tempo da fome
Do de dentro. Corpo se 
conhecendo, lento,
Um sol de diamante 

alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este 

tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. 

Sobre nós a vida
A vida se derramando. 

Cíclica. Escorrendo.
Te descobres vivo sob
um jogo novo.
Te ordenas. 

E eu deliquescida: 
amor, amor,
Antes do muro, antes da 

terra, 
devo,
Devo gritar a minha palavra, 

uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de 

um rochedo. 
Devo gritar
Digo para mim mesma. 

Mas ao teu lado me 
estendo
Imensa. 

De púrpura. De prata. 
De delicadeza.


hilda hilst

domingo, 20 de maio de 2012

antissalmo por um desherói


a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão


seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore
Deus ordenara nele a borra
o rosto e os livros com erva
andorinhas enferrujadas


manoel de barros em "gramática expositiva do chão".


sexta-feira, 18 de maio de 2012

flora


Imagino-te já idosa
Frondosa toda a folhagem
Multiplicada a ramagem
De agora
Tendo tudo transcorrido
Flores e frutos da imagem
Com que faço essa viagem
Pelo reino do teu nome
Ó, Flora
Imagino-te jaqueira
Postada à beira da estrada
Velha, forte, farta, bela
Senhora
Pelo chão, muitos caroços
Como que restos dos nossos
Próprios sonhos devorados
Pelo pássaro da aurora
Ó, Flora
Imagino-te futura
Ainda mais linda, madura
Pura no sabor de amor e
De amora
Toda aquela luz acesa
Na doçura e na beleza
Terei sono, com certeza
Debaixo da tua sombra
Ó, Flora


gilberto gil

quinta-feira, 17 de maio de 2012

com os meus olhos de cão e outros poemas

Meu muitas fomes
Meu cerne tão pontilhado:
Vivo no escuro dos eus
Sou dado-dardo, sou guincho
Lago, lingote, desvãos
Sou nicho, pássaro alto
Buscando semilla, grão.

hilda hilst

segunda-feira, 14 de maio de 2012


o que me faz bem
são as folhas e suas nervuras
a luz que confunde e define tudo
as fotos das bicicletas
os passeios dos meninos
observando os cavalos
coluna dói, mas é bom
músculos retesados
só provam pro mundo que eu valho

alguma coisa
qualquer moeda
eu sirvo pra salvar alguém.


ana f.

bálsamo

se me perguntarem
do cheiro da saudade,
vou dizer que hoje
no final da tarde,

um cheiro forte
de dama inglesa
no fim da vida,
me trouxe norte.

o resto, só sei supor.

falo com propriedade
do cheiro da saudade
que faz pulsar amor.


bárbara leite

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...