sábado, 31 de dezembro de 2011

poemas de dezembro

 

quem me acode à cabeça e ao coração
neste fim de ano, entre alegria e dor?
que sonho, que mistério, que oração?

Amor.


carlos drummond de andrade


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

a quinta história


Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais , açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se ornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” – de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? Como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? No vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.
A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas.


clarice lispector in “a legião estrangeira”. 1977, 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

frida.



poemas malditos, gozosos e devotos

                                                    VIII

É neste mundo que te quero sentir
É o único que sei. O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa.
Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos.
Mas tu sabes a delícia da carne
Dos encaixes que inventaste. De toques.
Do formoso das hastes. Das corolas.
Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?
Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram.

Se feitas de carne.

Dirás que o humano desejo
Não te percebe as fomes. Sim, meu Senhor,
Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto
Com os enlevos
De uma mulher que só sabe o homem.


hilda hilst

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

ilusão à toa / amor mais que discreto


...
Olha, somente um dia
Longe dos teus olhos
Trouxe a saudade
De um amor tão perto
E o mundo inteiro
Fez-se tão tristonho
Mas embora agora eu te tenha perto
Eu acho graça do meu pensamento
A conduzir o nosso amor discreto
Sim, amor discreto pra uma só pessoa
Pois nem de leve sabes que eu te quero
E me apraz essa ilusão à toa.


Talvez haja entre nós o mais total interdito
Mas você é bonito o bastante
Complexo o bastante
Bom o bastante
Pra tornar-se ao menos por um instante
O amante do amante
Que antes de te conhecer
Eu não cheguei a ser
Eu sou um velho
Mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes
O grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha,
Talvez bem mais que a minha
Os livros, filmes, filhos ganhariam colorido
Se um dia afinal
eu chegasse a ver que você vinha
E isso é tanto que pinta no meu canto
Mas pode dispensar a fantasia
O sonho em branco e preto
Amor mais que discreto
Que é já uma alegria
Até mesmo sem ter o seu passado, seu tempo
O seu agora, seu antes, seu depois
Sem ser remotamente
Se quer imaginado
Se quer imaginado
Se quer imaginado

Se quer
Por qualquer de nós dois.


caetano

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

o impossível carinho


Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!


manuel bandeira

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

passeio

                                                                                                8

Vereis um outro tempo estranho ao vosso.
Tempo presente mas sempre um tempo só,
Onipresente.
A dimensão das ilhas eu não sei.
Será como pensardes ou como é
Vossa própria e secreta dimensão.
Às vezes pareciam infinitas
De larguras extremas e tão longas
Que o olhar desistia do horizonte
E sondava: ervas, água
Minúcias onde o tato se alegrava
Insetos, transparências delicadas
Tentando o vôo quase sempre incerto.

O peito era maior que o céu aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito inquieto
É olhar ao redor como quem vê
E silenciar também como quem ama.
...


hilda hilst

sombra boa


                                                 I
...
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore .
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.


manoel de barros

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

cantares de perda e predileção


Eu amo Aquele que caminha
Antes do meu passo
É Deus e resiste.

Eu amo a minha morada
A Terra triste.
É sofrida e finita
E sobrevive.

Eu amo o Homem-luz
Que há em mim.
É poeira e paixão
E acredita.
Amo-te, meu ódio-amor
Animal-Vida.
És caça e perseguidor
E recriaste a Poesia
Na minha Casa.
(XXIII)


hilda hilst

sábado, 10 de dezembro de 2011

retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada

        
                                            VI

No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.


manoel de barros em "o guardador de águas".

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

tu queres sono: despe-te dos ruídos



Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.


ana cristina cesar

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

passeio

                                                       
                                                                     1.


Não haverá um equívoco em tudo isso?
O que será em verdade transparência
Se a matéria que vê, é opacidade?
Nesta manhã sou e não sou minha paisagem
Terra e claridade se confundem
E o que me vê
Não sabe de si mesmo a sua imagem.

E me sabendo quilha castigada de partidas
Não quis meu canto em leveza e brando
Mas para o vosso ouvido o verso breve
Persistirá cantando.
Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.

Serão leves as límpidas paredes
Onde descansareis vosso caminho?
Terra, tua leveza em minha mão.
Um aroma te suspende e vens a mim
Numas manhãs à procura de águas.
E ainda revestida de vaidades, te sei.
Eu mesma, sendo argila escolhida
Revesti de sombra a minha verdade.



hilda hilst em "exercícios para uma trajetória poética do ser".

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

água viva


Também tenho que te escrever porque tua seara é a das palavras discursivas e não o direto de minha pintura. Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos. Este não é um livro porque não é assim que se escreve. O que escrevo é um só clímax? Meus dias são um só clímax: vivo à beira.
Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra. Meu corpo incógnito te diz: dinossauros, ictiossauros e plessiossauros, com sentido apenas auditivo, sem que por isso se tornem palha seca, e sim úmida. Não pinto idéias, pinto o mais inatingível "para sempre". Ou "para nunca", é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar com a mão a palavra. A palavra é objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta. Tenho que me destituir para alcançar cerne e semente de vida. O instante é semente viva.


clarice 

domingo, 4 de dezembro de 2011

itinerário


De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia - dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma intensidade estou em mim. Dentro de mim e ao mesmo tempo de outras coisas, numa seqüência infinita que poderia me fazer sentir grão de areia. Mas estar dentro de mim é muito vasto. Minhas paredes se dissolvem. Não as vejo mais, e por um instante meu pensamento se expande, rompendo limites num percurso desenfreado. Nesse rápido espraiar, meu ser anexa a si as coisas externas. O parque, as árvores, o sol, as gentes deixam de ter existência privada e, dentro de mim, estão sob meu domínio. Como membros de meu corpo, ou pensamentos já feitos ou palavras já formuladas - eles se aninham em mim, fazendo parte do meu ser. Me torno em parque, em árvore, sol, em gentes. O processo é tão breve que sequer tenho tempo de regozijar-me com ele. Porque subitamente tudo volta.


caio fernando

sábado, 3 de dezembro de 2011

olho muito tempo o corpo de um poema




olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas.





ana cristina cesar

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

metalurgia




                Ponho a palavra em estado de gramatical ofensa,
no torno retalho suas redondezas,
desgasto obsessivo com a broca da caneta
o que há de angular e mole na sentença.
Fora, uma forma enxuta, dentro, amor de sequidões,
ovo sozinho sem nenhum conceito a circundar-lhe a
norma
de ser só ovo, sêmen contido, casca de memória.
Fazer abrasivo:
a lima, a lixa, a mão desgastam por extornos
a rixa com o verso, a rima com o avesso;
no chão, limalhas, matéria de contornos;
na página, o poema:
liso, úmido, duro como gelo.


carlos vogt

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...