sexta-feira, 20 de junho de 2014

Curvo-me diante de seus 
Pés para que sua Luz guie meus passos. 
Levo minha Cabeça ao chão para que sua 
Força me dê a consciência necessária nas decisões e bons pensamentos. 

Cubro-me de branco para que a totalidade de sua Paz, pacifique meu coração. 
Agradeço por todas as horas em que as sensações de ir ou não ir me confundiram e sua presença me dizia: "Pare!" 
Agradeço pelo simples fato de poder reverenciar o sagrado que habita meu ser. Gratidão!"

Roger Cipó © Olhar de um Cipó

sábado, 24 de maio de 2014

aquilo que sobra


gosto daquilo que sobra.
daquilo que as pessoas desprezam.
na feira, recolho entre os dejetos
a semente da abóbora, a folha da mandioca.
no empório, compro o farelo do trigo, do arroz.
gosto de me alimentar de coisas nutritivas.
pessoas principalmente.
mas nossa cultura, assim como os grãos, refina
as pessoas.
tira delas o mais nutritivo e deixa apenas o miolo
sem sustância.
por isso gosto do que sobra.
das pessoas desprezadas como eu.


chacal


sexta-feira, 16 de maio de 2014

a menina do mar

...
Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos. Mas durante a maré alta os rochedos estavam cobertos de água. Só se viam as ondas que vinham crescendo do longe até quebrarem na areia com barulho de palmas. Mas na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios, de anêmonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas. E a água do mar era transparente e fria. Às vezes passava um peixe, mas tão rápido que mal se via. Dizia-se «Vai ali um peixe» e já não se via nada. Mas as vinagreiras passavam devagar, majestosamente, abrindo e fechando o seu manto roxo. E os caranguejos corriam por todos os lados com uma cara furiosa e um ar muito apressado.



sophia

quinta-feira, 15 de maio de 2014

da importância de ser atordoado


É tão bom bater a cabeça na parede
Diariamente
Bater a fronte, a nuca
O nariz
Até que os miolos se derramem
Sem saber quem somos
Ou para onde vamos
Eu bati minha cabeça na parede hoje

Você já bateu a sua?

Não se acanhe
Todos batem a cabeça na parede
Tem gente que bate escondida
Uma pancada ou duas
Outros batem à vista
De todos
São estes publicamente
Batedores de cabeça
Zonzos seres atordoados
Que não vivem sem
Levar pancadas
Em seus miolos moles

Pois então não faça cerimônia
Bata mesmo com vontade
Até perder a noção das coisas.


Fernando stratico. 

terça-feira, 22 de abril de 2014

versos a pé


Meus versos são descalços,
Porque gosto da quietude das palavras.
Há muitas interferências entre pés e chão.
Há muitas interferências dentro.
Há interferências demais.
Gosto do silêncio que cala.
Gosto de palavras simples.
De palavras humanas.
Da palavra filho.
Do sentimento mãe.
Gosto de seres.
Seres e pessoas.
Pessoas, em geral, são poemas.
Poemas explodem, invadem e desaguam em forma de palavras.
Meus versos são descalços, porque são as mãos que os escrevem.
Meu coração fala pelas mãos.
Meu coração precisa falar.
Minhas mãos precisam de poesia.
Meus pés precisam pisar o chão.
Meus versos descalços versam o mundo
Pisam no chão.

adriana monteiro de barros, no livro Ponte de versos, fevereiro de 2007.

terça-feira, 8 de abril de 2014

pertencer


Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.
Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.
Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é, por exemplo, que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e, no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.
No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.
Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego, os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!


clarice

poema dedicado à Manoel de Barros

dizem que entre nós
há oceanos e terras com peso de distância.
talvez. quem sabe de certezas não é o poeta.
o mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.


contra essa distância
tu me deste uma sabedora desgeografia
e engravidando palavra africana
tornei-me tão vizinho
que ganhei intimidades
com a barriga do teu chão brasileiro.


e é sempre o mesmo chão,
a mesma poeira nos versos,
a mesma peneira separando os grãos,
a mesma infância nos devolvendo a palavra
a mesma palavra devolvendo a infância.


e assim,
sem lonjura,
na mesma água
riscaremos a palavra
que incendeia a nuvem.


Mia Couto (Moçambique)

sexta-feira, 28 de março de 2014

ninguém me habita


Ninguém me habita. A não ser
o milagre da matéria
que me faz capaz de amor,
e o mistério da memória
que urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa merecer na outrora.

Ninguém me habita. Sozinho,
resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiúras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.

Thiago de Mello
(1921)

sexta-feira, 21 de março de 2014

ao hoje.

porque tudo o é.

...

O Poema


O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner 

(1919-2004)

A um homem do passado


Estes são os tempos futuros que temia
o teu coração que mirrou sob pedras,
que podes recear agora tão fundo,
onde não chegam as aflições nem as palavras duras?

Desceste em andamento; afinal era
tudo tão inevitável como o resto.
Viraste-te para o outro lado e sumiram-se
da tua vista os bons e os maus momentos.

Tu ainda tinhas essa porta à mão.
(Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.)
Agora já não é possível morrer ou,
pelo menos, já não chega fechar os olhos.

Manuel António Pina, in «Todas as Palavras — poesia reunida (1974-2011)». Ed. Assírio & Alvim.

segunda-feira, 10 de março de 2014

contos de eva luna

...
- Conta-me um conto – digo-te.
- Como queres que ele seja?
- Conta-me um conto que nunca contasses a ninguém.
...

Isabel Allende

sábado, 15 de fevereiro de 2014

mamãe

"Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma coisa só - a inteira - cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber?" - 


João Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: veredas".

domingo, 19 de janeiro de 2014

odes maiores ao pai

Hoje completa um ano sem meu pai. Saudade é o teu traço bordado em cada verso meu.
Que você esteja bem meu paizinho. Muita luz para você.


(Largo Pesante)
I

Uns ventos te guardaram. Outros guardam-me a mim. E aparentemente separados
Guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram.
Será lícito guardarmo-nos assim?
Pai, este é um tempo de espera. Ouço que é preciso esperar
Uns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles viveram sempre,
Claros gigantes, líquida semente no meu pouco de terra.

Este é um tempo de silêncio. Tocam-te apenas. E no gesto
Te empobrecem de afeto. No gesto te consomem.

Tocaram-te nas tardes, assim como tocaste
Adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda na mãos
A pequena raiz, a fibra delicada que a si se construía em solidão?
Pai, assim somos tocados sempre.
Este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as vestes
Um suor invisível toma corpo e na morte nosso corpo de medo
É que floresce.

Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos fechados
Uns espaços de luz rompem a treva. Meu pai: Este é um tempo de treva.


VI

Há tanto a te dizer agora! Meus olhos se gastaram
Procurando a palavra nas figuras, nos textos, nas estórias.
Era preciso viajar e levantada em renúncias redescobrir a morte
Além de seu sudário e suas tremuras. Quase nada aprendi. De nada me lembrei.
Há talvez a memória de tatos, um sentir rarefeito, um ouvido inexato
Deitado em solidão sobre o teu peito. E adeuses ingênuos, calados de vitória
E aquele de fereza, de acerto, dissolvido em orgulho, ressuscitado
Vagamente em canto. A na manhà, o meu sonho passara e a minha voz
Não se erguera em poesia.

Será preciso esquecer o contorno de umas formas que vi: naves, portais
E o grande crisântemo sobre a feixa restrita do canteiro.

Através do gradil, no terraço do tempo de percebo.
E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece.



hilda hilst

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Tecendo a manhã


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. 


João Cabral de Melo Neto em “A Educação pela Pedra” (1966).

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

tabacaria


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15-1-1928


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Eis-me aqui, velho e rouco
Bebendo com meus fantasmas
Num bar na esquina do cu do mundo
Sacando que cheguei ao fim
Suco de saquinho na overdose da vida
Descrente do arremate de mais esta data
Afogado no resto de cerveja da lata
Uma rima pária na lama da pátria
Um afogado orando no fundo do oceano
Como quem despe uma flor
Pétala a pétala
Vejo Jesus de calça Lee
Cantando um rock antigo
Um velho rock rural
Antes que eu acabasse a oração
Jesus de calça Lee para e me diz:
Sua vida deu R$161,50
Mas fica por R$ 160 mesmo

Cheguei até aqui triturado
Vidinha mais demi-mondaine
Cacos de ossos & restos de carne
Suco de sangue no almoço dos deuses
Platão palitando os dentes
Com palitos de fósforo
& jogando truco com Leibniz
Enquanto Marcus, o cãozinho truta,
Dorme na caixa de sapatos

A vida é realmente uma merda
O mundo é um bicho teórico
Dá voltas e mais voltas
E não vai a lugar nenhum

Como um baseado asilado no Sonnets
– No XXXIV, se não me atrapalha a memória,
“Why didst thou promise such a beauteous day” –
Chego ao fim
Lembro-me de Dirty Nick
Que morava na rua 143, perto da avenida Lenox
Lembro-me de Chet Baker
Cumprindo seis meses de prisão na Ilha de Rikers
Lembranças que não aliviam
Fora punido e o que mais pesava
Era não haver a menor esperança em meus anseios
Chego ao fim...
E, quer saber?
Foda-se

Jesus de calça Lee retorna
Benze dois copos de cerveja
Lê, num guardanapo, um poema rasurado
Acha uma merda a merda do poema
Toma seu copo de cerveja
& se manda, cantarolando
Um velho rock rural

Chego ao fim
Como quem cuida de um anfiteatro de girassóis
Como quem lambe a cria natimorta
Como quem toca guitarra
No furúnculo das cidades
& come figos aos domingos
Álvares de Campos lendo Álvares de Azevedo
Chego ao fim da vida
Como ao fim da pizza
Suave, arrogante & incrédulo
Encharcado no coração
Do último útero severo

Mãe, você acha que sobreviveremos à tosca toada de tantos trastes?
Mother, do you think they’ll try to break my balls?
Mãe, você está ainda aí?
E aqui, mãe, você está?
Me traga flores, cigarros e conhaque de vez em quando
Isso aqui é muito solitário

DANTE SEIXAS

domingo, 5 de janeiro de 2014

o pastor amoroso perdeu o cajado, 
e as ovelhas tresmalharam-se pela encosta, 
e de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
ninguém lhe apareceu ou desapareceu. 
nunca mais encontrou o cajado. 
outros, praguejando contra ele, 
recolheram-lhe as ovelhas. 
ninguém o tinha amado, afinal. 

quando se ergueu da encosta e da verdade falsa,
viu tudo: os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre, 
as grandes montanhas longe, 
mais reais que qualquer sentimento, 
a realidade toda, 
com o céu e o ar e os campos que existem, 
estão presentes. 
(e de novo o ar, 
que lhe faltara tanto tempo,
lhe entrou fresco nos pulmões) 
e sentiu que de novo o ar lhe abria, 
mas com dor, 
uma liberdade no peito. 

poemas de alberto caeiro, um dos pseudônimos de pessoa.

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...