segunda-feira, 28 de novembro de 2011

cantiga quase de roda



na roda da vida
lá vai o menino
trazendo contente
um canto no peito
na fronte uma estrela.

mal chega e descobre
que o mundo é feroz
e o tempo é de sombras.
os homens caminham
calados, sozinhos,
com medo de amar.

de pena, o menino
começa a cantar.
(cantigas afastam
as coisas escuras).

portanto ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância.

na roda do mundo,
ao lado dos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
seu canto de amor.

um canto que faça
o mundo mais manso,
cantigas que tornem
a vida mais limpa,
um canto que faça
os homens mais crianças.

o menino entrega ao mundo
o dom da sabedoria
que nasce do coração.
porque é do amor e da infância
que o mundo tem precisão.


thiago de mello

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

dezessete horas


Arde a tarde, 
nua. 

Nua como um rosto, 
nua como um seio 
no ar. 

Há um rumor 
nos troncos 
maduros de mel. 

Zumbe a noite 

(a noite? A noite), 

zumbe a noite, 
opaca. Misteriosa. Indevassável. 

Próxima.


péricles eugênio da silva ramos

terça-feira, 22 de novembro de 2011

poemas rupestres


Desde sempre parece que ele fora proposto a pássaro.
Mas não tinha preparatórios de uma árvore
Pra merecer no seu corpo ternuras de gorjeios. 
Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte. 
Ninguém era início de nada. A gente pintava nas pedras a voz. 
E o que dava santidade às nossas palavras era a canção do ver! 
Trabalho nobre aliás mas sem explicação 
Tal como costurar sem agulha e sem pano. 
Na verdade na verdade 
Os passarinhos que botavam primavera nas palavras.


manoel de barros

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

asas e azares



Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não dói.


paulo leminski

domingo, 13 de novembro de 2011

a iara



...
Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
tão orgulhosa,
que não quer ser desprezada pelas outras...

E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas
em nheengatu:
- "Iquê, ianè retama icu.
Paraná inhana rumassaua quitó..."

Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com a gaze das águas,
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
- Enfeitiça-me, ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar vencer..."

Mas custa-me encontrá-la,
e só a noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas,
posso beijá-la,
nua,
dormida,
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar.


guimarães rosa

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

meu quintana



Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São,  Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer  livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! Digo  quintanares.



manuel bandeira

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

liberdade


Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.


sophia de mello breyner andresen

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

amavisse

                                                           I


Carrega-me contigo, Pássaro - Poesia
Quando cruzares o amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem

Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. 
E movediças embaçadas vias de Ilusão.

Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro - Poesia
E a paisagem limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.
No Amanhã. 



hilda hilst

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...