Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a
inteligência. Ele é frio e puro como gelo, no entanto pode-se dormir sobre
ele. Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na
alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas
não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque
no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se
transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o
que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na
parte alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente —, na superfície
dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde
mesmo, eu não sei dizer. O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços
velhos um pouco azulado, e move-se como gelatina, vagarosamente. Às vezes
torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em céu
azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? Não,
não passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu... Mas é que basta
silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível,
a da existência. E abaixo de todas as dúvidas — o estudo cromático — sei que
tudo é perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a
si mesmo. Nada escapa à perfeição das coisas, é essa a história de tudo.
clarice