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E a pergunta martela e pousa
como um corvo
no desespero aberto da janela.
- Quem escreveria o poema de meu tempo?
- Eu próprio? Mas, com que mãos, arroubos, insânias?
com que vaidades, prêmios, vexames?
Fala alguém por alguém
- com alheio coração?
Vive alguém por alguém
- ou morre sempre aquém da própria mão?
Não seriam a fala
o amor
a vida
a metafórica versão do exílio
o brilho da apagada estrela
ausência e concreção do nada?
Sim, é verdade que cada dia sei mais do que se compõem a poesia e o nada.
Debulho poemas e milharais
como o camponês aduba estrofes e mulheres.
Mas me sinto maduro e inútil. Como ontem:
- imaturo e fútil.
Não acordo mais às cinco
não selo mais o animal
desesperam-me os vegetais. Do pomar
olho minha inútil biblioteca. Doirados
frutos na estante..
Inutilíssima sapiência. Sabíamos tudo.
Merecíamos tudo. Tínhamos até fé.
Outrora eu passeava entre canteiros de enciclopédias
limpando pulgões podando ervas e páginas. Perdia-me
na contemplação da abelha sobre as letras:
- favos de mel derramavam-se da estante.
Todos nós líamos os poetas
mas não lavramos um mundo mais justo,
E enquanto soturnos decifrávamos as tabuinhas dos
caldeus os mais astutos e modernos
empolgavam o poder e os generais
marcando em nossas testas anátemas fatais.
E líamos grossos romancistas
exalando suor vermelho e revoltas sobre a praça.
Povo era a palavra
e o amanhã era a palavra
da palavra povo.
Mas porque estava tudo escrito
nosso futuro
petrificado
de nós se alienou.
Ontem soltávamos pombas nos estádios
éramos livres, juvenis e a paz um poster de Picasso.
Mas foram-se os posters e Picasso
- e as pombas não voltaram nunca mais.
Nossos pais também liam os poetas
citavam os clássicos
e pelas noites com seus robes tomavam chávenas
e liam dourados tomos sem ver as traças
- que nos comem.
Mas os acontecimentos desviaram-se dos livros
e por mais que entulhássemos os cursos de história
de novo a história
desviava-nos seus rios
e os livros
nem sempre férteis
aprodreciam no Nilo.
E sobrevieram borrascas e explodindo códigos e leis
que eram logo dissolvidos e refeitos em novas leis
e códigos. E erguíamos diques e parágrafos murando o mar
e a ressaca dos fatos
- a tudo rebentar.
A vida, a vida é mais que profecias e algemas
a vida é irrefreável
não se contém nas lâminas
partidos
nem nos fichários
e antenas
a vida
- é o impoemável poema.
affonso romano de sant’anna
(pelo dia da poesia)