quinta-feira, 22 de março de 2012

a paixão segundo G.H.


Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar delimitada - então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma.


clarice

quarta-feira, 14 de março de 2012

a grande fala do índio guarani

                                                                          3

E a pergunta martela e pousa
como um corvo
                         no desespero aberto da janela.

- Quem escreveria o poema de meu tempo?
- Eu próprio? Mas, com que mãos, arroubos, insânias?
                               com que vaidades, prêmios, vexames?

Fala alguém por alguém
                                    - com alheio coração?
Vive alguém por alguém
                                    - ou morre sempre aquém da própria mão?

Não seriam a fala
                   o amor
                   a vida
                                    a metafórica versão do exílio
                                    o brilho da apagada estrela
                                    ausência e concreção do nada?

Sim, é verdade que cada dia sei mais do que se compõem a poesia e o nada.

      Debulho poemas e milharais
      como o camponês aduba estrofes e mulheres.
      Mas me sinto maduro e inútil. Como ontem:
                                                          - imaturo e fútil.

Não acordo mais às cinco
não selo mais o animal
desesperam-me os vegetais. Do pomar
olho minha inútil biblioteca. Doirados
frutos na estante..

                        Inutilíssima sapiência. Sabíamos tudo.
                        Merecíamos tudo. Tínhamos até fé.

Outrora eu passeava entre canteiros de enciclopédias
limpando pulgões podando ervas e páginas. Perdia-me
na contemplação da abelha sobre as letras:
- favos de mel derramavam-se da estante.

Todos nós líamos os poetas
mas não lavramos um mundo mais justo,
E enquanto soturnos decifrávamos as tabuinhas dos
caldeus os mais astutos e modernos
                               empolgavam o poder e os generais
marcando em nossas testas anátemas fatais.

E líamos grossos romancistas
exalando suor vermelho e revoltas sobre a praça.
Povo era a palavra
                               e o amanhã era a palavra
                                                                da palavra povo.

Mas porque estava tudo escrito
                                            nosso futuro
                                                                  petrificado
de nós se alienou.
                       Ontem soltávamos pombas nos estádios
éramos livres, juvenis e a paz um poster de Picasso.
Mas foram-se os posters e Picasso
                        - e as pombas não voltaram nunca mais.

Nossos pais também liam os poetas
citavam os clássicos
              e pelas noites com seus robes tomavam chávenas
              e liam dourados tomos sem ver as traças
                                                              - que nos comem.

Mas os acontecimentos desviaram-se dos livros
e por mais que entulhássemos os cursos de história
de novo a história
                              desviava-nos seus rios
e os livros
                 nem sempre férteis
                                                 aprodreciam no Nilo.
E sobrevieram borrascas e explodindo códigos e leis
que eram logo dissolvidos e refeitos em novas leis
e códigos. E erguíamos diques e parágrafos murando o mar
e a ressaca dos fatos
                                   - a tudo rebentar.
A vida, a vida é mais que profecias e algemas
             a vida é irrefreável
                           não se contém nas lâminas
                                                          partidos
                                                          nem nos fichários
                                                          e antenas
a vida
               - é o impoemável poema.


 affonso romano de sant’anna

(pelo dia da poesia)

terça-feira, 13 de março de 2012

óxido-redução


A nossa biologia é uma grande química
Talvez uma física,
Transmissão involuntária de cargas avassaladoras.
Toda clorofila se transmuda em caroteno
(alteração estrutural enrubescendo o mundo)
Pigmentação da pele de repente enrubescida.
A nossa química é uma grande biologia,
Permutação de cromossomos semelhantes,
Enlace genético e outra vez involuntário
Tudo do nada, essa coisa inexplicável de alma gêmea
Átomos opostos, prótons, elétrons,
Cadeias orgânicas perfeitas,
Elementos inéditos, deliciosa sensação de conhecê-los.
A nossa física é quase uma matemática
Expressão alfanumérica, triplas incógnitas,
E este desenfreado impulso de resolução;
Corrente magnética, um misto de todas as ciências,
Progesterona exalando pelos poros,
Alguma lógica, alguma fantasia,
Tempestade de hormônios, choque térmico.
A nossa química se mistura à refração da luz,
Teus olhos nos meus olhos, velocidade de propagação,
Simetria de imagens, vibração de cordas tensas,
Uma verdadeira melodia.
Ah, a nossa ciência é um hemisfério tropical,
Uma ilha caribenha, um sol, um frio, não sei,
Talvez um verdadeiro paraíso da geografia.


patrícia moresco

sábado, 10 de março de 2012

com os meus olhos de cão e outras novelas

Dessignificando
Dou tréguas a mim mesmo. 
Não sou nem carne e sangue 
Nem poeira.
Um muro negro
E frinchas de um azul escuro
Espiam minha nova armadura
Minha cara de cera.


hilda hilst

quarta-feira, 7 de março de 2012

com os meus olhos de cão e outras novelas



Quando me darás, ó Grande Riso,
Um cordão de ágatas ou de fios de água
Finos como aqueles sedosos
Que pendem das anêmonas
Quando? Para que eu possa
Te laçar, escuridão e gozo
Meus eus desintegrados

E APENAS
O tu de ti em mim
Quando
Este amor regrudado a seu osso?


hilda hilst

sexta-feira, 2 de março de 2012

impressionista


uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

adélia prado

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...