terça-feira, 26 de novembro de 2013

esse encontro é puro sentimento

poesia XXII

Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho

Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva. 



hilda hilst

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

osmo

Enfim, o existir não me confunde nada. O que me confunde é a vontade súbita de me dizer, de me confessar, às vezes eu penso que alguém está dentro de mim, não alguém totalmente desconhecido, mas alguém que se parece a mim mesmo, que tem delicadas excrescências, uns pontos rosados, outros mais escuros, um rosado vermelho indefinido, e quando chego bem perto dos pequenos círculos, quando tento fixá-los, vejo que eles têm vida própria, que não são imóveis como os poros de Mirtza, que eles se contraem, se expandem, que eles estão à espera... de quê? De meus atos. Não meus atos cotidianos, nada disso de se levantar da cama, tomar resoluções, banho caminhar, não é nada disso, talvez em alguns dias, quem sabe, esses pequenos atos se encadeiem de modo me levar ao grande ato, não sei, preciso refletir mais demoradamente, e chamo o meu ato de grande ato não porque ele tenha importância para mim, para mim é simples, é apenas muito estimulante, mas o grande ato deve ter importância para a maior parte das gentes, ah, isto eu sinto que é verdade, porque se não tivesse importância eu não me confundiria tanto, quero dizer, eu não ficaria tão em dúvida quanto à possibilidade de me dizer aos outros, de me confessar. E quando faço o que convencionei chamar de “o grande ato”, vejo que um daqueles pontos rosados se fecha, cicatriza, é como se nunca ele tivesse existido, porque a pele desse outro alguém que está dentro de mim, a pele do dono desses pontos rosados, só deseja uma coisa: desfazer-se das delicadas excrescências. Quando eu penso em todas essas coisas, penso também na dificuldade de descrevê-las com nitidez para todos vocês. Vocês são muitos, ou não? Gostaria de me confessar a muitos, gostaria de ter uma praça, um descampado talvez fosse melhor, porque no descampado, olhando para todos os lados (não se preocupem com as minhas rimas internas) para essa coisa de norte sul leste oeste, vocês compreenderiam com maior clareza, vocês respirariam mais facilmente, e poderiam vomitar também sem a preocupação de sujar o cimento, poderiam vomitar e jogar em seguida um pouco de terra sobre o vômito, e quem sabe depois vocês fariam pequenas bolas com todos os vômitos, naturalmente usando luvas especiais, claro, e lançariam as bolas com ferocidade sobre mim. E se houvesse alguém parecido comigo, eu o colocaria ao meu lado, e quem sabe depois viria mais alguém, e outros e muitos, e ficasse um apenas, a atirar o seu bolo de vômito e terra sobre nós, isso seria o ideal porque poderíamos organizar uma bela partida de beisebol, beisebol sim, beisebol é mais vida, a bola a gente agarra, a gente abraça, a gente encosta no peito. Beisebol sim. Incrível. Eu não imaginava conseguir dizer tanto. Incrível. Eu sempre me penso fechado, sobre mim uma lâmina de pura resistência, uma lâmina coesa, fosca, uma lâmina sobre os meus costados, chegando até a cabeça, em forma de viseira, se colocando depois sobre o meu rosto, e eu carrego esta lâmina e ando um pouco agachado, assim como esses velhos que têm sempre um feixe de lenha sobre os ombros, e olhem que eu sou bem alto, e assim mesmo me seu agachado. (...) Penso: vocês não serão culpados do meu grande ato?


hilda hilst

sábado, 28 de setembro de 2013

metamorfoses da casa

ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.

a casa dorme, sonha no vento
a delícia súbita de ser mastro.

como estremece um torso delicado,
assim a casa, assim um barco.

uma gaivota passa e outra e outra,
a casa não resiste: também voa.

ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.

eugenio de andrade

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

amarildo


E agora, Amarildo?
o Papa voltou,
a noite chegou,
o gigante dormiu,
você sumiu,
onde está, Amarildo?
onde está, você?
Você que é pedreiro
sem paradeiro,
você que faz casas
que ama, pesca?
Onde está, Amarildo?

Está sem documentos
está sem direitos
está sem voz
já não pode trabalhar,
já não pode pescar,
amar já não pode,
a noite passou,
o dia não veio,
você não veio,
o riso não veio,
não veio a verdade,
Cabral não ouviu
a mídia se calou
a PM não viu
cadê, Amarildo?

Cadê Amarildo?
sua força de Boi,
seu tijolo de bronze,
seu barraco pequeno,
sua grande família,
seu pouco salário,
sua pele proibida,
seu bom coração,
sua justiça — cadê?

Com a vara na mão
quer abrir o mar,
mas não existe mar;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Rocinha,
Rocinha não há mais.
Amarildo, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você cantasse
o samba portelense,
se você corresse,
se você fugisse,
se você morresse...
Mas você não morre
você vive, Amarildo!

Unidos no escuro
qual bichos-do-mato,
sem democracia,
sem justiça, de fato,
para se confiar,
sem polícia montada
que fuja a galope,
nós marchamos, Amarildo!
Amarildo, para onde?"

- AMARILDO - Poema de Diego Ruas, estudante de Engenharia Florestal e militante de esquerda. Baseado no poema "José" de Carlos Drummond de Andrade, em apoio à familia, amigos/as e vizinhas/os de Amarildo.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

o pássaro azul


há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você ?

bukowski


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

grande sertão veredas

...Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo.


guimarães rosa

terça-feira, 13 de agosto de 2013

monólogos

Um cachorro todo mundo sabe que serve para a gente falar sozinho.
Um cavalo, também. Pois qual é o ginete que, na solidão dos campos, já não monologou com a sua montaria? "Anda, cavalinho! Temos que chegar antes do anoitecer!" E o cavalinho, mais compreensivo do que qualquer cavalão, troca as orelhas e acelera a andadura. "Mas que será aquilo que vai andando lá adiante? Algum vivente de a pé... Vagabundos!... Anda, anda, cavalinho!"
Tudo isso me faz lembrar uma personagem de Vicki Baum, que, foragida da Europa em Xangai, vivia tão só que falava com as coisas. "Agora, cafeteira, vamos preparar um bom café... bem forte e bem quentinho.
Agora, papel, vamos escrever uma carta. Pode ser que desta vez ela responda... Mas também, está tão longe... Talvez ainda não tenha recebido nenhuma."
E, por falar em falar sozinho, me contaram que havia um sujeito que, não tendo cachorro nem cafeteira, falava consigo mesmo. A coisa chegou a tal ponto que foi consultar um psiquiatra. Este procurou tranqüilizá-lo:
- Não se preocupe, o seu caso não tem a mínima gravidade. É um desabafo como outro qualquer, a coisa mais natural do mundo. E depois, quem é que não gosta de falar consigo mesmo?
- Mas não é isso, doutor... É que o senhor não imagina como eu sou chato.

mario quintana em "da preguiça como método de trabalho."

terça-feira, 30 de julho de 2013

...a viagem não acaba nunca. só os viajantes acabam. e mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: ‘não há mais que ver’, sabia que não era assim. o fim duma viagem é apenas o começo doutra. é preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. é preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. é preciso recomeçar a viagem. sempre. o viajante volta já.”


Saramago em “viagem a Portugal”.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

são jorge

um dia um Papa decretou que São Jorge jamais havia existido.
meu Deus! a falta que nos faz São Jorge...
se ninguém se atrever a montar no seu Cavalo Branco,
o Dragão Negro nos apanhará!

mario quintana - velório sem defunto, 1990

sábado, 20 de julho de 2013

os amigos


os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.


eugenio de andrade

quarta-feira, 10 de julho de 2013

elegia

trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
à noite, se neblina, abrem guardas chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
a literatura estragou tuas melhores horas de amor.
ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

drummond, 1938.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

fra mauro (Lua)


Fra Mauro é uma região de terras-altas na Lua, onde a missão Apollo 14 pousou em fevereiro de 1971. Seu nome vem da cratera Fra Mauro, de 80 km de diâmetro, situada dentro da área abrangida por ela e a cratera tem seu nome em homenagem e reconhecimento dos cientistas de hoje ao monge e mapista do século XV, que mapeou o então conhecido Mar Mediterrâneo com surpreendente acuidade.
A região é uma área geológica montanhosa, cobrindo largas porções da superfície lunar em volta do Mare Imbrium e se imagina ser composta dejeta do impacto que formou o 'mare'. É caracterizada por cordilheiras de algumas centenas de metros de altura, que se irradiam da base de Imbrium e são separadas por vales ondulantes. A cobertura de ejeta está hoje enterrada sob uma camada de cascalho mais jovem e solo lunar revolvido por impactos de meteoritos mais recentes e possíveis 'lunamotos'- terremotos lunares. Os dejetos da área devem provavelmente ter vindo de mais de 100 km de profundidade da camada lunar original após o impacto e as amostras trazidas pelos astronautas da Apollo 14 mostram evidências de quando a base de Imbrium foi formada e ajudam a estabelecer a idade e a natureza física e química do material interno da crosta pré-impacto.
A borda sudeste do Mare Insularum se estende entre as crateras Lansberg e Fra Mauro. A metade mais baixa desta área é ocupada pelo Mare Cognitum; apesar da área ter parecido geologicamente desinteressante a princípio, ela provou conter importantes locações e desde então é uma das mais estudadas regiões da Lua. Esta é a área onde a sonda Ranger 7 se espatifou na descida e onde duas expedições Apollo pousaram: a Apollo 12perto da Surveyor 3 e a Apollo 14 nas colinas na borda da cratera Fra Mauro.
A área de Fra Mauro se tornou mais interessante para os geólogos quando o sismógrafo da Apollo 12 na cratera Surveyor, 110 km a oeste, enviou à Terra sinais de 'lunamotos' mensais, que se acreditam terem se originado na cratera de Fra Mauro quando a Lua passava por seu perigeu.
Um impacto recente perto do local do pouso da Apollo 14 formou a cratera chamada Cone, com cerca de 300 m de extensão e 76 m de profundidade, com largos blocos de material original da área espalhados pela encosta da cratera. Os astronautas Alan Shepard e Edgar Mitchell subiram esta encosta para fotografar o interior da cratera e coletar amostras de rocha da borda em volta. fonte:wiki


quinta-feira, 4 de julho de 2013

poética

estou farto do lirismo comedido
do lirismo bem comportado
do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
abaixo os puristas
todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
estou farto do lirismo namorador
político
raquítico
sifilítico
de todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
de resto não é lirismo
será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
quero antes o lirismo dos loucos
o lirismo dos bêbedos
o lirismo difícil e pungente dos bêbedos
o lirismo dos clowns de Shakespeare
— não quero mais saber do lirismo que não é libertação.


manuel bandeira

terça-feira, 25 de junho de 2013

profecia da invencibilidade poética


Quero que desprezem a poética até o último instante.
Quero que zombem, que maltratem essa arte.
Quero que a limária das palavras seja tripudiada,
Que edifiquem cemitérios com obras de redondilhas.
Quero que proíbam a disseminação da rima,
Que gargalhem quando passar o poeta.
Que destruam qualquer gene desse vício,
Que desiludam um a um os novos aprendizes.
E então, quando tudo acabar,
E cada um dos homens de ferro estiver só,
Nascerá neles uma inconsistente risca de Poesia.
Restará para eles uma profunda solidão,
Que é irmã gêmea da Poesia.
Restará o desejo pelo que eles não foram,
Que é o desabafo na Poesia.
Restará o escárnio pelos que foram Poetas,
Que é o ponto crítico da Poesia.
Restará só a lembrança de um peito de aço,
Que é o refúgio na Poesia.
E quando cada certeza se tornar um delírio
(apenas a miragem de uma luz inexistente
imaginada na escuridão do derradeiro),
Restará apenas o Medo.
E o Último dos Homens de Ferro se tornará Poeta,
Cultivando em seu medo a mais sublime Poesia.


patrícia moresco

quarta-feira, 12 de junho de 2013

amar




que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

drummond 

domingo, 9 de junho de 2013

De que serve a bondade

I

De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?

De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?

2

Em vez de serem apenas bons, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
ou melhor: que a torne supérflua!

Em vez de serem apenas livres, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!

Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio!


Bertolt Brecht

sexta-feira, 3 de maio de 2013

elegia desesperada ou o desespero da piedade


Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias
Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

vinicius de moraes, antologia poética - Rio de Janeiro, 1960, pág.73.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

pretexto


O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas cartas exemplares organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada do meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.

manoel de barros, livro sobre nada.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

poema


oh! aquele meninozinho que dizia
"fessora, eu posso ir lá fora?"
mas apenas ficava um momento
bebendo o vento azul...
agora não preciso pedir licença a ninguém.
mesmo porque não exite paisagem lá fora:
somente cimento.
o vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
mas o azul irreversível persiste em meus olhos.

mario quintana - a vaca e o hipogrifo, p. 152

quinta-feira, 11 de abril de 2013

se eu fosse um padre


se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!

mario quintana

sexta-feira, 5 de abril de 2013

impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.  

adélia prado

sexta-feira, 15 de março de 2013

a pedra


pedra sendo
eu tenho gosto de jazer no chão.
só privo com lagarto e borboletas.
certas conchas se abrigam em mim.
de meus interstícios crescem musgos.
passarinhos me usam para afiar seus bicos.
às vezes uma garça me ocupa de dia.
fico louvoso.
há outros privilégios de ser pedra:
a - Eu irrito o silêncio dos insetos.
b - Sou batido de luar nas solitudes.
c - Tomo banho de orvalho de manhã.
d - E o sol me cumprimenta por primeiro

manoel de barros

quinta-feira, 7 de março de 2013

poema começado no fim


um corpo quer outro corpo.
uma alma quer outra alma e seu corpo.
este excesso de realidade me confunde.
jonathan falando:
parece que estou num filme.
se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
as casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
o Caminho do Céu.

adélia prado

quarta-feira, 6 de março de 2013

de passarinhos


para compor um tratado sobre passarinhos
é preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens
e dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
e que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
é preciso que haja insetos para os passarinhos.
insetos de pau sobre tudo que são os mais palatáveis.
a presença de libélulas seria uma boa.
o azul é muito importante na vida dos passarinhos
porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos
eternos que nem uma fuga de Bach.

manoel de barros

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

dedução


não acabarão com o amor,
nem as rugas,
nem a distância.
está provado,
pensado,
verificado.
aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
amo firme,
fiel
e verdadeiramente.

vladimir maiakovski

sábado, 23 de fevereiro de 2013

grande sertão: veredas


“...mire, veja: o mais importante e bonito do mundo é isto;
que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas, mas que elas vão sempre mudando.
afinam ou desafinam. verdade maior.
é o que a vida me ensinou.”

joão guimarães rosa


quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

o tempo


a eternidade não depende de nós.
precários seres, manchados de limites,
incapazes de dar vida
a qualquer coisa que dure para sempre,
já nasceram soletrando o Never More.
tudo o que o homem faz é perecível.
a começar pelo próprio homem,
ração diária predileta
do tempo, desde o instante
em que o tempo acompanhou
a expansão de uma galáxia:
um pássaro invisível,
as asas cheias de auroras,
de cujo bico escorria
o silêncio do arco-íris.

thiago de mello

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

dois poemas da tranquilidade


I
Deve haver uma maneira tranquila
uma tranquilidade
uma certeza.
Deve haver uma febre
uma febre que seja, quando menos,
que nos dê olhos para ler tudo.
Depois dizem que há uma salvação...

Da minha infância
não guardo agora senão o chão que piso
e esse não chega.
Talvez a minha face
o meu vulto
a sombra
possam servir de algo.
Mas não.

Assim sem alegria
arrefecido, antigo
como posso comover-me
arder exausto
ou beijar o ar
o ar simplesmente
enleado!


II
Porque não posso senão trazer esta humildade
como posso dar-me ou pedir-me
se me pedem e me dão
dizendo fazê-lo por uma esperança.
Mas eu vejo
o que a morte me tem sido para que veja
e não respondo ao que imagino
porque sei que só posso desejar o que desejo.


fernando alves dos santos

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

canção na plenitude


não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

o que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
a maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força -- que vem do aprendizado.
isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés -- mesmo se fogem -- retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

lya luft

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...