segunda-feira, 31 de outubro de 2011

sombra boa

                                                             III    


Retrato de um poste mal afincado ele era.
Sendo um vaqueiro entrementes; peão de campo.
No jeito comprido de estar em pé seu corpo fazia
três curvas no ar.
Usava um defeito de ave no lábio.
Desde o vilarejo em que nasceu podia alcançar o
cheiro das árvores.
Esse Malafincado:
Sempre nos pareceu feito de restos.
Ventos o amontoavam como folhas.
Foi sempre convidado a fazer parte de arrebóis.
(Sintomático de tordos era o seu amanhecer.)
Falava em via de hinos -
Mas eram coisas desnobres como intestinos de moscas
que se mexiam por dentro de suas palavras.
Gostava de desnomear:
Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz
esbarra.
Rede era vasilha de dormir.
Traços de letras que um dia encontrou nas pedras de
uma gruta, chamou: desenhos de uma voz.
Penso que fosse um escorço de poeta.





manoel de barros

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

cantares dos sem-nome e de partida



                                                              VIII
Aquela que não te pertence por mais queira
(Porque ser pertencente
É entregar a alma a uma Cara, a de áspide
Escura e clara, negra e transparente), Ai!
Saber-se pertencente é ter mais nada.
É ter tudo também.
É como ter o rio, aquele que deságua
Nas infinitas águas de um sem-fim de ninguéns.
Aquela que não te pertence não tem corpo.
Porque corpo é um conceito suposto de matéria
E finito. E aquela é luz. E etérea.

Pertencente é não ter rosto. É ser amante
De um Outro que nem nome tem. Não é Deus nem Satã.
Não tem ilharga ou osso. Fende sem ofender.
É vida e ferida ao mesmo tempo, “ESSE”
Que bem me sabe inteira pertencida.

hilda hilst

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

o poeta me viu



bastou um olhar
e pode ver
a mola mestra
da aprendiz
que sou

a escolha que fiz
no avesso e apesar
da sorte adversa
de não pesar
de ser feliz

poeta é quem vê
o que não é de dizer
e ainda assim

diz.


alice ruiz

domingo, 23 de outubro de 2011

do desejo

                                                             I

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.





hilda hilst

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

ternura




Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.



vinícius de moraes

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

o amor nos tempos do cólera



...


bebeu tanto anis que foi preciso ajudá-la a subir as escadas, e sofreu um ataque de riso com lágrimas que chegou a alarmar todos. não obstante, quando conseguiu dominá-lo no remanso perfumado do camarote, fizeram um amor tranquilo e são, de serenos avós, que se fixaria em sua memória como a melhor lembrança daquela viagem lunática. não se sentiam mais como noivos recentes, ao contrário do que o comandante e Zenaida supunham, e menos ainda como amantes tardios. era como se tivessem saltado o árduo calvário da vida conjugal, e tivessem ido sem rodeios ao grão do amor. deixavam passar o tempo como dois velhos esposos escaldados pela vida, para lá das armadilhas da paixão, para lá das forças brutais das ilusões e das miragens dos desenganos: para lá do amor. pois tinham vivido juntos o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto denso ficava quanto mais perto da morte.



gabriel garcía márquez -    425

quarta-feira, 12 de outubro de 2011



hoje é dia de sereias.
dia de sereia sair d' água
e ir para beira do rio.
hoje é teu dia sereia.

penso tanto em ti nesses dias
de lua bonita, sereia.
te desejo sereia,
sereia,
sereia.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

água viva



O que este escrevo não tem começo; é uma continuação. Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente? Minha experiência vem de que eu já consegui pintar o halo das coisas. O halo é mais importante que as coisas e que as palavras. O halo é vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: é uma palavra como fino bloco monolítico que projeta sombra. E é trombeta que anuncia. O halo é o it.

         Preciso sentir de novo o it dos animais. Há muito tempo não entro em contato com a vida primitiva animálica. Estou precisando estudar bichos. Quero captar o it para poder pintar não um águia e um cavalo, mas um cavalo com asas abertas de grande águia.

         Arrepio-me toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Os bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se conta. Pareço ter certo horror daquela criatura viva que não é humana e que tem meus próprios instintos embora livres e indomáveis. Animal nunca substitui uma coisa por outra.

         Os animais não riem. Embora às vezes o cão ri. Além da boca arfante o sorriso se transmite por olhos tornados brilhantes e mais sensuais, enquanto o rabo abana em alegre perspectiva. Mas gato não ri nunca. Um “ele” que conheço não quer mais saber de gatos. Fartou-se para sempre porque tinha certa gata que ficava em danação periódica. Eram tão imperativos os seus instintos que na época do cio, após longos e plangentes miados, jogava-se de cima do telhado e feria-se no chão.



clarice

sábado, 8 de outubro de 2011

ode descontínua e remota para flauta e oboé. de ariana para dionísio.


                                                            IX

 “Conta-se que havia na China uma mulher
   belíssima que enlouquecia de amor todos
   os homens. Mas certa vez caiu nas
   profundezas de um lago e assustou os peixes.”

Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida.
E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.



hilda hilst

quarta-feira, 5 de outubro de 2011



Sinto que viver é inevitável. Posso na primavera ficar horas sentada fumando, apenas sendo. Ser às vezes sangra. Mas não há como não sangrar pois é no sangue que sinto a primavera. Dói. A primavera me dá coisas. Dá do que viver. E sinto que um dia na primavera é que vou morrer. De amor pungente e coração enfraquecido.



clarice em "a descoberta do mundo".

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...