quinta-feira, 31 de março de 2011

a vida bate



Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

Ferreira Gullar

quarta-feira, 30 de março de 2011


- que música belíssima ouço no fundo de mim. é feita de traços geométricos se entrecruzando no ar. é música de câmara. música de câmara é sem melodia. e modo de expressar o silêncio. o que te escrevo é de câmara.



clarice - água viva

segunda-feira, 28 de março de 2011

amavisse


Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
(II)

* * *

Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.
(Via Vazia - VIII)


hilda hilst

quarta-feira, 23 de março de 2011

exausto



Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.



adélia prado

terça-feira, 22 de março de 2011

segunda-feira, 21 de março de 2011

sombra boa

                                                          
                                                            VII
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.




manoel de barros

sombra boa


                                                                                    VI  

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.

Comuniquei ao Padre Ezequiel, o meu Preceptor, esse gosto esquisito.

Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.

- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.

Ele fez um limpamento em meus receios.

O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,

pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas...

E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.



manoel de barros em 'O Livro das Ignorãças'.

quinta-feira, 17 de março de 2011

nêga



“faço do meu canto a neura existencial. o conteúdo do cotidiano, o dia-a-dia da vida. a eletrônica está substituindo o coração. a inspiração passou a depender do transistor, o poeta de aço, de poesia programada... é demais pra meus sentimentos, tá sabendo?”




chico anysio e arnaud rodrigues

quarta-feira, 16 de março de 2011

elegia

Liberdade,
sem ti nada mais sei.

Compreendi o mundo
em ti, sutil
compêndio.

Amei muito antes
de me amares,
entre surtos e sulcos.

Amei
e só a morte
de perder-te
me faz viver
multiplicando
auroras, meses.

E sou tão doido
que o riso inútil
percorri
de me perder, perdendo-te,
perdido em mim.



carlos nejar

como nascem as manhãs



O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.





flora figueiredo

terça-feira, 15 de março de 2011

Tô bem de baixo pra poder subir
Tô bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar
Devagarinho pra poder caber
Bem de leve pra não perdoar
Tô estudando pra saber ignorar
Eu tô aqui comendo para vomitar
Eu tô te explicando
Pra te confundir
Eu tô te confundindo
Pra te esclarecer
Tô iluminado
Pra poder cegar
Tô ficando cego
Pra poder guiar
Suavemente pra poder rasgar
Olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência
Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da vida pra poder morrer
Eu tô me despedindo pra poder voltar.

tom zé

domingo, 13 de março de 2011

noturno arrabaleiro



Os grilos...os grilos...Meu Deus, se a gente
Pudesse
Puxar
Por uma
Perna
Um só
Grilo,
Se desfiariam todas as estrelas.



mario quintana

quinta-feira, 10 de março de 2011

apocalipse



" - a gente tá só dando um toque. não existe o centro, tá sabendo? a dor, o amor, a terra, a guerra, o pobre, o nobre... tudo é emprestado. tudo é por enquanto, não sabe? certo não é não... muda. não muda, Paulinho? tem que mudar... a gente ta só dando um toque. quem se tocar, se tocou. quem se toca, se toca..." 




Chico Anysio e Arnaud Rodrigues

sexta-feira, 4 de março de 2011

meu bem, meu mal



Você é meu caminho

Meu vinho, meu vício
Desde o início estava você

Meu bálsamo benigno

Meu signo, meu guru
Porto seguro onde eu voltei

Meu mar e minha mãe

Meu medo e meu champagne
Visão do espaço sideral

Onde o que eu sou se afoga

Meu fumo e minha ioga
Você é minha droga
Paixão e carnaval
Meu zen, meu bem, meu mal.

caetano

quarta-feira, 2 de março de 2011

 - não humanizo bicho porque é ofensa – há de respeitar-lhe a natureza –  eu é que me animalizo. não é difícil e vem simplesmente. 
é só não lutar contra e é só entregar-se.


clarice

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...