quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

poemas aos homens de nosso tempo

                                                       XVI


Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto

Não cabe no meu canto.


hilda hilst

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

gosto de ver as minhas mãos

sonhar contigo,
sonhar os meandros
mais secretos
do teu corpo
floresta e armadilha,
fonte e bramido

Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
entrelaçadas, adormecidas,
recriando o peito,
as espáduas, o ventre,
as coxas, o sexo,
amazônia interior

Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
por vezes um único dedo
desenha no ar
os olhos, a boca, o cabelo,
estrela negra
que só eu conheço
Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
sonhar esta travessia do espelho
de reflexos infindos
que é a minha recordação de ti.
Aliás, que outra coisa
podem elas fazer?

isabel meyrelles

pasárgada


Não foste embora pra Pasárgada.
Não era teu destino.
Não te habituarias lá.
Em teu território próprio, intransferível,
nem rei nem amigo do rei,
és puramente aquele lúcido
e dolorido homem experiente
que subjugou seu desespero
a poder de renúncia, vigília e ritmo.

manuel bandeira

retrato do artista quando coisa

                                                            3.

Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto
De alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais ideias: terá chuvas, tardes, ventos,
passarinhos...
Nos restos de comida onde as moscas governam
ele achará solidão.
Será arrancado de dentro dele pelas palavras
a torquês.
Sairá entorpecido de haver-se.
Sairá entorpecido e escuro.
Ver sambixuga entorpecida gorda pregada na
barriga do cavalo –
Vai o menino e fura de canivete a sambixuga:
Escorre sangue escuro do cavalo.
Palavra de um artista tem que escorrer
substantivo escuro dele.
Tem que chegar enferma de suas dores, de seus
limites, de suas derrotas.
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de
enxergar no olho de uma garça os perfumes do
sol.


manoel de barros

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

reconhecimento do amor

Os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
Onde se reclina a inquietação do forte
(Ou que forte se pensa ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
A bruma da renúncia:
Não querias a vida plena,
Tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
Não pedias nada,
Não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.

Descansei em ti meu feixe de desencontros
E de encontros funestos.
Queria talvez - sem o perceber, juro -
Sadicamente massacrar-te
Sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
Desde a hora do nascimento,
Senão desde o instante da concepção em certo mês perdido
na História,
Ou mais longe, desde aquele momento intemporal
Em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
No caos universal

Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
Sua espada coruscante, seu formidável
Poder de penetrar o sangue e nele imprimir
Uma orquídea de fogo e lágrimas.

Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
O Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
Quando - por esperteza do amor - senti que éramos um só.

Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
Dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
Com o olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
E a pura essência em que nos transmutamos dispensa
Alegorias, circunstâncias, referências temporais,
Imaginações oníricas,
O vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
Todas as imposturas da razão e da experiência,
Para existir em si e por si,
À revelia de corpos amantes,
Pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM.

Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
E se confessasse jubilosamente vencido,
Até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
A melodia, a paisagem, a transparência da vida,
Perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.


drummond

o andarilho


Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?*
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam.


 
*penso que devemos conhecer algumas poucas cousas sobre a fisiologia dos andarilhos. avaliar até onde o isolamento tem o poder de influir sobre os seus gestos, sobre a abertura de sua voz, etc. estudar talvez a relação desse homem com as suas árvores, com as suas chuvas, com as suas pedras. saber mais ou menos quanto tempo o andarilho pode permanecer nas condições humanas, antes de se adquirir do  chão a modo de um sapo. antes de se unir às vergônteas como as parasitas. antes de revestir uma pedra à maneira do limo. antes mesmo de ser apropriado por relentos como os lagartos. saber com exatidão quando um modelo de pássaro se ajustará à sua voz. saber o momento em que esse homem poderá sofrer de prenúncios. saber enfim qual o momento em que esse homem começa a adivinhar.


manoel de barros p. 353 em “os outros: o melhor de mim sou eles”, 4ª parte do Livro sobre nada.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

o livro de bernardo

                                                 50

Já me dei ao desfrute
De ser ao mesmo tempo
Pedra e sapo.

manoel de barros  p.420

sábado, 25 de fevereiro de 2012

nada disfarça o apuro do amor

Um carro em ré. Memória da água em movimento. Beijo.
Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao
céu.
Aguço o ouvido.
Os aparelhos que só fazem som ocupam o lugar
clandestino da felicidade.
Preciso me atar ao velame com as próprias mãos.
Sirgar.
Daqui ao fundo do horto florestal ouço coisas que
nunca ouvi, pássaros que gemem.

ana cristina cesar

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

os dois

Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry.
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
E vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
Frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.


manoel de barros em “desenhos de uma voz”, p.437.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

superna nótula

Não escrevo poesia
É ela que me escreve
É ela que se atreve
A grafar-me, tirania

Poesia não se lavra
Nasce sozinha
Erva-daninha
Erva-palavra

Poesia não se poda
É soberano
Sobre-humano
Incomoda

A poesia está em tudo
É quase ente
Onipresente
Onidesnudo


fabio sexugi

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

ária amaríssima de um instante



Ária Amaríssima de um instante
SOBRE mim o sudário das coisas. Brandura extensa
Camada-transparência sobre as gentes. Vê só:
Eu não te olho com o teu olho que sabe
Que quase tudo em ti é transitório. Meu olho-liquidez
Descobre uma tarde esvaída, tarde-madrugada
Tempo alongado onde te fizeste em viuvez.
Não perdeste a mulher ou o homem que amavas. Amamos tanto
E a perda é cotidiana e infinita. Não é isso
AGORA
Quando te olho e sei de um Tempo-Tarde-Madrugada alongada.
...

hilda hilst 

livro do desassossego


Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

bernardo soares, um dos heterônimos de pessoa.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

fragmentos de canções e poemas

                                                     10.

Inocência animal exercida
Nessa tarde que abriga violetas
E éguas cobertas. Água esquiva.
Nitidez de sábado.
Chover nos braços de alguém!
E essa espera nunca interrompida
De ser levada, de ser arrastada
Com as mãos. Claros jardins!
Dia de ficar em casa
Dentro do corpo – como em seu estojo
Um instrumento.

manoel de barros p. 55 no livro “poesias”.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

metáfora sem o menor refinamento



Eu entendo você. Juro, entendo sim. Imagino que seja difícil me escolher. Acho mais, acho que deve ser assustador. Sei que deve ser assim. Estou fechada, tenho a capa duríssima e nenhuma palavra gravada em mim – ainda que em letras douradas – é convite para leitura. No entanto me ofereço com suavidade e espera.
Leia-me. Leia-me bem devagar, faça anotações em minhas margens, grife o que achar importante (ou se tiver algum sentimento para ser compreendido mais tarde). Mas por favor, não me deixe esquecida, intacta, desconhecida. Ia dizer empoeirada, me recuso.

Pode começar pelo fim, se quiser. Adeus.
Mas continue. Me abra ao acaso e passeie por trechos engraçados – eles devem chamar sua atenção assim, naturalmente. Demore- se no que eu tiver de poético.
De bobo mesmo. Onde eu falo orvalho em vez de umidade. Onde tem relva no lugar de grama. Essas coisas de menina que me abrem, me permeiam e me finalizam.
Acredito ser isso, a poesia, o melhor de mim.  O que eu rimo, o que eu choro, o que eu metaforo.
...


claudia camara.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Aqui dividem-se os dias,
Os íntimos minutos,
O que arvora fora do corpo,
O que no fundo é amor,
Com seu pulsar febril.

luiz de miranda

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

muito depois
da Terra
na idade dos tempos
findos
resistindo ainda
a mancha
da lua.


maria da paz ribeiro dantas

do desejo

                                                                           VII

Lembra-te que há um querer doloroso
E de fastio a que chamam amor.
E outro de tulipas e de espelhos
Licencioso, indigno, a que chamam desejo.
Não caminhar um descaminho, um arrastar-se
Em direção aos ventos, aos açoites
E um único extraordinário turbilhão.
Por que me queres sempre nos espelhos
Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis
Se só me quero viva nas tuas veias?

hilda hilst

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

via espessa

                                                           XVII

Minha sombra à minha frente desdobrada.
Sombra de sua própria sombra? Sim. Em sonhos via.
Prateado de guizos
O louco sussurrava um refrão erudito:
- Ipseidade, Samsara. Ipseidade, senhora. –

E enfeixando energia, cintilando
Fez de nós dois um único indivíduo.


hilda hilst p. 81 em “do desejo”.

canto de iemanjá




composição de baden powell e vinicius de moraes.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

sabiá com trevas


                                                      VI

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco;
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na
sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.


manoel de barros, p.172 no livro "arranjos para assobio".

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...