Enfim, o existir não
me confunde nada. O que me confunde é a vontade súbita de me dizer, de me
confessar, às vezes eu penso que alguém está dentro de mim, não alguém
totalmente desconhecido, mas alguém que se parece a mim mesmo, que tem
delicadas excrescências, uns pontos rosados, outros mais escuros, um rosado
vermelho indefinido, e quando chego bem perto dos pequenos círculos, quando
tento fixá-los, vejo que eles têm vida própria, que não são imóveis como os
poros de Mirtza, que eles se contraem, se expandem, que eles estão à espera...
de quê? De meus atos. Não meus atos cotidianos, nada disso de se levantar da
cama, tomar resoluções, banho caminhar, não é nada disso, talvez em alguns
dias, quem sabe, esses pequenos atos se encadeiem de modo me levar ao grande
ato, não sei, preciso refletir mais demoradamente, e chamo o meu ato de grande
ato não porque ele tenha importância para mim, para mim é simples, é apenas
muito estimulante, mas o grande ato deve ter importância para a maior parte das
gentes, ah, isto eu sinto que é verdade, porque se não tivesse importância eu
não me confundiria tanto, quero dizer, eu não ficaria tão em dúvida quanto à
possibilidade de me dizer aos outros, de me confessar. E quando faço o que
convencionei chamar de “o grande ato”, vejo que um daqueles pontos rosados se
fecha, cicatriza, é como se nunca ele tivesse existido, porque a pele desse
outro alguém que está dentro de mim, a pele do dono desses pontos rosados, só
deseja uma coisa: desfazer-se das delicadas excrescências. Quando eu penso em
todas essas coisas, penso também na dificuldade de descrevê-las com nitidez
para todos vocês. Vocês são muitos, ou não? Gostaria de me confessar a muitos,
gostaria de ter uma praça, um descampado talvez fosse melhor, porque no
descampado, olhando para todos os lados (não se preocupem com as minhas rimas
internas) para essa coisa de norte sul leste oeste, vocês compreenderiam com
maior clareza, vocês respirariam mais facilmente, e poderiam vomitar também sem
a preocupação de sujar o cimento, poderiam vomitar e jogar em seguida um pouco
de terra sobre o vômito, e quem sabe depois vocês fariam pequenas bolas com
todos os vômitos, naturalmente usando luvas especiais, claro, e lançariam as
bolas com ferocidade sobre mim. E se houvesse alguém parecido comigo, eu o
colocaria ao meu lado, e quem sabe depois viria mais alguém, e outros e muitos,
e ficasse um apenas, a atirar o seu bolo de vômito e terra sobre nós, isso
seria o ideal porque poderíamos organizar uma bela partida de beisebol,
beisebol sim, beisebol é mais vida, a bola a gente agarra, a gente abraça, a
gente encosta no peito. Beisebol sim. Incrível. Eu não imaginava conseguir
dizer tanto. Incrível. Eu sempre me penso fechado, sobre mim uma lâmina de pura
resistência, uma lâmina coesa, fosca, uma lâmina sobre os meus costados,
chegando até a cabeça, em forma de viseira, se colocando depois sobre o meu
rosto, e eu carrego esta lâmina e ando um pouco agachado, assim como esses
velhos que têm sempre um feixe de lenha sobre os ombros, e olhem que eu sou bem
alto, e assim mesmo me seu agachado. (...) Penso: vocês não serão culpados do
meu grande ato?
hilda hilst