quarta-feira, 30 de maio de 2012

ode descontínua e remota para flauta e oboé - de ariana para dionísio

                                                  canção V

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio
Se me amas, podes dizer que não.
Pouco me importa
ser nada à tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã.

A mim me importa, Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido

E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria


E no meu quarto se faz verbo de amor


hilda hilst

quinta-feira, 24 de maio de 2012

prelúdios intensos para os desmemoriados do amor

                                                                                                    I

Toma-me. A tua boca de linho
sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, 

ANTES
Antes que a carnadura se

desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha

morte, toma-me
Crava a tua mão, respira

meu sopro, deglute
Em cadência minha escura

agonia.
Tempo do corpo este tempo,
tempo da fome
Do de dentro. Corpo se 
conhecendo, lento,
Um sol de diamante 

alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este 

tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. 

Sobre nós a vida
A vida se derramando. 

Cíclica. Escorrendo.
Te descobres vivo sob
um jogo novo.
Te ordenas. 

E eu deliquescida: 
amor, amor,
Antes do muro, antes da 

terra, 
devo,
Devo gritar a minha palavra, 

uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de 

um rochedo. 
Devo gritar
Digo para mim mesma. 

Mas ao teu lado me 
estendo
Imensa. 

De púrpura. De prata. 
De delicadeza.


hilda hilst

domingo, 20 de maio de 2012

antissalmo por um desherói


a boca na pedra o levara a cacto
a praça o relvava de passarinhos cantando
ele tinha o dom da árvore
ele assumia o peixe em sua solidão


seu amor o levara a pedra
estava estropiado de árvore e sol
estropiado até a pedra
até o canto
estropiado no seu melhor azul
procurava-se na palavra rebotalho
por cima do lábio era só lenda
comia o ínfimo com farinha
o chão viçava no olho
cada pássaro governava sua árvore
Deus ordenara nele a borra
o rosto e os livros com erva
andorinhas enferrujadas


manoel de barros em "gramática expositiva do chão".


sexta-feira, 18 de maio de 2012

flora


Imagino-te já idosa
Frondosa toda a folhagem
Multiplicada a ramagem
De agora
Tendo tudo transcorrido
Flores e frutos da imagem
Com que faço essa viagem
Pelo reino do teu nome
Ó, Flora
Imagino-te jaqueira
Postada à beira da estrada
Velha, forte, farta, bela
Senhora
Pelo chão, muitos caroços
Como que restos dos nossos
Próprios sonhos devorados
Pelo pássaro da aurora
Ó, Flora
Imagino-te futura
Ainda mais linda, madura
Pura no sabor de amor e
De amora
Toda aquela luz acesa
Na doçura e na beleza
Terei sono, com certeza
Debaixo da tua sombra
Ó, Flora


gilberto gil

quinta-feira, 17 de maio de 2012

com os meus olhos de cão e outros poemas

Meu muitas fomes
Meu cerne tão pontilhado:
Vivo no escuro dos eus
Sou dado-dardo, sou guincho
Lago, lingote, desvãos
Sou nicho, pássaro alto
Buscando semilla, grão.

hilda hilst

segunda-feira, 14 de maio de 2012


o que me faz bem
são as folhas e suas nervuras
a luz que confunde e define tudo
as fotos das bicicletas
os passeios dos meninos
observando os cavalos
coluna dói, mas é bom
músculos retesados
só provam pro mundo que eu valho

alguma coisa
qualquer moeda
eu sirvo pra salvar alguém.


ana f.

bálsamo

se me perguntarem
do cheiro da saudade,
vou dizer que hoje
no final da tarde,

um cheiro forte
de dama inglesa
no fim da vida,
me trouxe norte.

o resto, só sei supor.

falo com propriedade
do cheiro da saudade
que faz pulsar amor.


bárbara leite

segunda-feira, 7 de maio de 2012

traduzir-se


uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

traduzir uma parte
na outra parte
         — que é uma questão
         de vida ou morte —
                  será arte?

ferreira gullar

estação de maio


A salvação opera nos abismos.
Na estação indescritível,
o gênio mau da noite me forçava
com saudade e desgosto pelo mundo.
A relva estremecia
mas não era pra mim,
nem os pássaros da tarde.
Cães, crianças, ladridos,
despossuíam-me.
Então rezei: salva-me, Mãe de Deus,
antes do tentador com seus enganos.
A senhora está perdida?
Disse o menino,
é por aqui.
Voltei-me
e reconheci as pedras da manhã.

adélia prado

quarta-feira, 2 de maio de 2012

cada dia matilde


Hoje a ti: és esbelta
como o corpo do Chile, e delicada
como uma flor de anis,
em cada ramo guardas testemunho
de nossas indeléveis primaveras:
Que dia é hoje? O teu.
E é o ontem amanhã, não sucedeu,
nenhum dia se foi de tuas mãos:
guardas o sol, a terra, as violetas
em tua breve sombra quando dormes.
E assim cada manhã
presenteias-me a vida.



pablo neruda

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...