segunda-feira, 30 de janeiro de 2012


Teve uma vez
Que eu vi
Uma velhinha arrumando
A mesa e
Costurando roupas enquanto
Eu escutava yann tiersen

E a velhinha
Não sabia que
Ela era poesia.

ana f.

silêncio

As coisas são mansas
Servem e nos lembram
Por algum tempo de alguém
Sobretudo
Há uma paixão muda entre nós três:
De nós duas
E
Do que se fez.

neusa doretto
Uma cidade adormecida
Não vê a sua noite.
Luzes contrastam com estrelas
Chão com o céu
Silêncio com o firmamento.
Sobre a cama você sonha,
Enquanto eu engulo a madrugada.


josiane giacomini alves

ao que lê


Não sei que argumento presencio
Nem o que tange só a margem.
Sei que em nada insisto
Senão em severo alarde.

É que grito pela vida
Que me toca e arde.
E se tiveres um tempo,
Convide-me quando jantares.
Estarei contigo, presença infinita.

Confio no teu elo,
Na tua esfera,
No teu conflito.

elaine pauvolid

domingo, 29 de janeiro de 2012

amavisse

                                                                         IV

Se chegarem as gentes, diga que vivo o meu avesso.
Que há um vivaz escarlate
Sobre o peito de antes palidez, e linhos faiscantes
Sobre as magras ancas, e inquietantes cardumes
Sobre os pés. Que a boca não se vê, nem se ouve a palavra

Mas há fonemas sílabas sufixos diagramas
Contornando o meu quarto de fundo sem começo.
Que a mulher parecia adequada numa noite de antes
E amanheceu como se vivesse sob as águas. Crispada.
Flutissonante.

Diga-lhes principalmente
Que há um oco fulgente num todo escancarado.
E um negrume de traço nas paredes de cal
Onde a mulher-avesso se meteu.

Que ela não está neste domingo à tarde, apropriada.
E que tomou algália
E gritou às galinhas que falou com Deus.


hilda hilst  p. 45 em “do desejo”.

sábado, 28 de janeiro de 2012

via espessa

                                                                       I
De cigarras e pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de estalagens da loucura.

Da carne de mulheres, querem nascer os homens.
E o poeta preexiste,  entre a luz e o sem-nome.


hilda hilst  p.65 em “do desejo”.

sobre a tua grande face

De tanto pensar, Sem Nome, me veio a ilusão.
A mesma ilusão

Da  égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n´água.


hilda hilst -  p. 113 em “do desejo”.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

cantares de perda e predileção

                                      XLVI

Talvez eu seja
O sonho de mim mesma.
Criatura-ninguém
Espelhismo de outra
Tão em sigilo e extrema
Tão sem medida
Densa e clandestina

Que a bem da vida
A carne se fez sombra.

Talvez eu seja tu mesmo
Tua soberba e afronta.
E o retrato
De muitas inalcançáveis
Coisas mortas.

Talvez não seja.
E ínfima, tangente
Aspire indefinida
Um infinito de sonhos
E de vidas.


hilda hilst

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

amor vegetal

Não creio que as árvores
fiquem em pé, em solidão, durante a noite.
Elas se amam. E entre as ramagens e raízes
se entreabrem em copas
em carícias extensivas.

Quando amanhece,
não é o cantar de pássaros que pousa em meus ouvidos,
mas o que restou na aurora
de seus agrestes gemidos.

affonso romano de sant’anna

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

decresce o corpo

fenecem pelos poros e eis surgir a juventude de uma era outra, cúspide de uma outrora certeza de vigor e força. Campeia o corpo. Agora antigo, monumento ao tempo a partir de então semeador para paragens muitas de futuro presente, distância de afetos e clamores. Portal para o fim, espécie em retorno, em breve semente. Ovo.

rosane carneiro

domingo, 22 de janeiro de 2012

quase de nada místico

Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,

e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:

poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti.


ana luísa amaral em “às vezes o paraíso” 

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

bilhete de ousada donzela


Jonathan,
há nazistas desconfiados.
Põe aquela sua camisa que eu detesto
- comprada no Bazar Marrocos -
e venha como se fosse pra consertar meu chuveiro.
Aproveita na terça que meu pai vai com minha mãe
visitar tia Quita no Lajeado.
Se mudarem de idéia, mando novo bilhete.
Venha sem guarda-chuva – mesmo se estiver chovendo -
Não agüento mais tio Emílio que sabe e finge não saber
que te namoro escondido e vive te pondo apelidos.
O que você disse outro dia na festa dos pecuaristas
até hoje soa igual música tocando no meu ouvido:
“Não paro de pensar em você.”
Eu também, Natinho, nem um minuto.
Na terça, às duas da tarde,
hora em que se o mundo acabar eu nem vejo.
Com aflição,
Antônia.


adélia prado 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

anotações a partir do meu astrolábio

Noite de verão, na praia, vi uma estrela cadente e decidi
fazer o "pedido". As aspas não são por acaso. O "pedido",
naquela ocasião, ainda era um simples pedido. Com o
passar do tempo, foi repetido dezenas de outras vezes.
57, para ser exato. 57 estrelas, para ser honesto.
Minha constelação de destinos.

marcelo pires

cicatriz


Beijo tua cicatriz.
Tua alma é minha.
Teus músculos distensos
 em minha boca
gritam que a vida
é este mar de fúrias.
teu sexo é uma taça
de vinho contemplativo
erguido em saudação
pelas almas anárquicas.
E entre o partir do trem
E o latido de um cão
As crianças cantam
Uma ciranda líquida
Ao entardecer
Girando no cálice róseo
Da tua alma, irmã da minha.
Bendita seja a palavra
Adormecida e saciada
Em nossos corpos de madrugada.

jurema barreto de souza.

família

Nossa família: as estações.
Nada sobra
do que julgam ser
as propriedades.

O corpo, a alma,
apenas usufruto.
Também os meus deveres.

Só o amor é nosso.
E o soluço.

carlos nejar

poemas malditos, gozosos e devotos

                                               
                                           XIX

Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.


hilda hilst.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

antes do nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.



adélia prado, in "bagagem".

domingo, 8 de janeiro de 2012

Meu bonde passa pelo Mercado



Meu bonde passa pelo Mercado.
Mas o que há de bom mesmo não está à venda,
O que há de bom não custa nada.
Este momento de euforia é a flor da eternidade.
E essa minha alegria inclui também minha tristeza
- a nossa tristeza...
Tu não sabias, meu companheiro de viagem?
Todos os bondes vão para o infinito!


mario quintana

o poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade



Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.


hilda hilst

sábado, 7 de janeiro de 2012

arte poética

Mirar o rio, que é de tempo e água,
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que passam os rostos como a água.

E sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar, sentir que a morte,
Que a nossa carne teme, é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.

E ver no dia ou ver no ano um símbolo
Desses dias do homem, de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.

E ver na morte o sonho, e ver no ocaso
Um triste ouro, e assim é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes, pelas tardes, uma face
Nos observa do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nossa própria face.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.


jorge luis borges

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

sobre o caminho


Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues, não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não coleciones dejetos, o teu destino és tu.

Despe-te
não há outro caminho.


eugénio de andrade

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

o guardador de águas

                                                                 II


Esse é Bernardo. Bernardo da Mata. Apresento.
Ele faz encurtamento de águas.
Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros
Até que as águas se ajoelhem
Do tamanho de uma lagarta nos vidros.
No falar com as águas rãs o
exercitam.
Tentou encolher o horizonte
No olho de um inseto - e obteve!
Prende o silêncio com fivela.
Até os caranguejos querem ele para chão.
Viu as formigas carreando na estrada 2 pernas de ocaso
para dentro de um oco... E deixou.
Essas formigas pensavam em seu olho.
É homem percorrido de existências.
Estão favoráveis a ele os camaleões.
Espraiado na tarde -
Como a foz de um rio - Bernardo se inventa...
Lugarejos cobertos de limo o imitam.
Passarinhos aveludam seus cantos quando o vêem.


manoel de barros

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...