quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

passarinhos

 

Despencados de voos cansativos
Complicados e pensativos
Machucados após tantos crivos
Blindados com nossos motivos

Amuados, reflexivos
E dá-lhe antidepressivos
Acanhados entre discos e livros
Inofensivos

Será que o sol sai pra um voo melhor?
Eu vou esperar, talvez na primavera
O céu clareia, vem calor
Vê só o que sobrou de nós e o que já era

Em colapso o planeta gira, tanta mentira
Aumenta a ira de quem sofre mudo
A página vira, o são delira, então a gente pira
E no meio disso tudo, 'tamo tipo...

Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro

Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro

Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá

Lá-laiá, lá-laiá, lá-laiá
Ãh-ãh, ãh-ãh-ãh
Áh-ãh-ãh

A Babilônia é cinza e neon, eu sei
Meu melhor amigo tem sido o som, okay
Tanto carma lembra Armagedon, orei
Busco vida nova tipo ultrassom, achei

Cidades são aldeias mortas, desafio nonsense
Competição em vão que ninguém vence
Pense num formigueiro, vai mal
Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus

No pé que as coisa vão, Jão, doidera
Daqui a pouco, resta madeira nem pros caixão
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pé no chão
Carros em profusão, confusão

Água em escassez bem na nossa vez
Assim não resta nem as barata (é memo'!)
Injustos fazem leis e o que resta pr'ocês?
Escolher qual veneno te mata
Pois somos tipo...

Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro

Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro

Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá

Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá

Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro

Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho (dois, três, quatro)
Nem que seja no peito um do outro



 Emicida e Vanessa da Mata

quinta-feira, 14 de julho de 2022

As ensinanças da dúvida


Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas
tão duras como lajedos.

Agora (o tempo é que o fez)
tenho um caminho de barro
umedecido de dúvidas.

Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza
de que vale a pena o amor.



Thiago de Mello


segunda-feira, 18 de abril de 2022

Da mais alta janela da minha casa

XLVIII


Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide, de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

 

Alberto caeiro, Da mais alta janela da minha casa (s.d.)

sexta-feira, 12 de julho de 2019

o haver


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
-  Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
De matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, de uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram nem ontem nem hoje.

Resta essa vontade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada,
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta este constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Este eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes

domingo, 5 de maio de 2019

na primeira manhã



Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como uma bumba-meu-boi sem capitão
E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo das colinas
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão
Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão
Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão
Solidão.

Compositores: Alceu Valenca

segunda-feira, 8 de abril de 2019

passeio

De um exílio passado entre a montanha e a ilha
Vendo o não ser da rocha e a extensão da praia.
De um esperar contínuo de navios e quilhas
Revendo a morte e o nascimento de umas vagas.
De assim tocar as coisas minuciosa e lenta
E nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.
De saber o cavalo na montanha. E reclusa
Traduzir a dimensão aérea do seu flanco.
De amar como quem morre o que se fez poeta
E entender tão pouco seu corpo sob a pedra.
E de ter visto um dia uma criança velha
Cantando uma canção, desesperando,
É que não sei de mim. Corpo de terra.

hilda hilst

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Tocada Por Um Anjo


Nós, desacostumados a coragem
Exilados da graça
Vivemos encolhidos em conchas de solidão
Até que o amor deixe o seu alto e sagrado templo
E se revele
Para nos libertar em vida.
O amor nos alcança
E em seu cortejo vem os êxtases
Velhas memórias do prazer
Antigas histórias de dor.
Se formos corajosos, no entanto,
O amor afasta as correntes do medo
De nossas almas.
Desacostumados por nossa timidez,
No clarão das luzes amorosas
Nós ousamos ser corajosos
E de repente vemos
Que o amor sacrifica tudo que somos
E o que seremos.
E, no entanto, é só o amor
Que nos liberta.


maya angelou

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019



indizível é o que sustenta nossas vigas
maremotos e águas paradas
a habilidade em lidar com os
descarrilamentos
a porção de lamentos que embrulhamos para
depois
quando um mais um é o infinito.


nilcéia kremer

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Velho


Todo o homem tem um navio no coração
todo o homem tem um navio
tem um país a descobrir em cada mão
tem um rio no sangue tem um rio
todo o homem tem um navio no coração.

Todo o homem tem um onde e tem um quando
um tempo de partir um tempo de voltar
sete palmos na terra mil caminhos no mar.

Todo o homem se perde.
Todo o homem se encontra.
E tem um tempo em que se mostra.
E tem um tempo em que se esconde.

Todo o homem tem um por e tem um contra.
Todo o homem se perde.
Todo o homem se encontra:
todo o homem tem um quando e tem um onde.




– Manuel Alegre, do livro “Manuel Alegre – 30 anos de poesia”. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

caminhando para as origens



Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos.

- Manoel de Barros, em entrevista "caminhando para as origens", a Bosco Martins. 2007.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Essa mulher, a doce melancolia


Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.



In "O peso da sombra"

eugénio de andrade


passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...