terça-feira, 24 de julho de 2012

tão bom aqui



Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui para rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
Tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestionamos elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
O de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
Em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
Alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
Refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
Eu nada sei de mim.


 adélia prado

segunda-feira, 23 de julho de 2012

passeio


                                                                     8
Vereis um outro tempo estranho ao vosso.
Tempo presente mas sempre um tempo só,
Onipresente.
A dimensão das ilhas eu não sei.
Será como pensardes ou como é
Vossa própria e secreta dimensão.
Às vezes pareciam infinitas
De larguras extremas e tão longas
Que o olhar desistia do horizonte
E sondava: ervas, água
Minúcias onde o tato se alegrava
Insetos, transparências delicadas
Tentando o vôo quase sempre incerto.

O peito era maior que o céu aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito inquieto
É olhar ao redor como quem vê
E silenciar também como quem ama.

Éramos muitos? Ah, sim
Eram muitos em mim.
O perigo maior de conviver era o perigo de todos.
Nosso Deus era um Todo inalterável, mudo
E mesmo assim mantido. Nosso pranto
Continuadamente sem ouvido
Porque não é missão de divindade
Testemunhar o pranto e o regozijo.

O que esperais de um Deus?
Ele espera dos homens que O mantenham vivo.

E os verdes, os azuis, o chumbo delicado
De umas tardes, a pureza das aves
Os peixes de verniz
Na abertura mais funda de umas águas.

(...)

- exercícios para uma trajetória poética do ser (1963-1966)
hilda hilst

segunda-feira, 16 de julho de 2012



Bordei um segredo pra você. Um daqueles bonitos, de brilhinho agudo de areia no sol. É que já disse muita coisa, mas ainda queria um segredo para você. Queria um segredo bonito para termos juntos porque, quando eu era pequena, pensava que amigo era quem contava e escutava segredo. Quem tinha um segredo junto com alguém era amigo do alguém. E o segredo era a coisa dos dois, que os dois guardavam juntos. Tenho um segredo com você. Mais que segredo de amigo. Segredo de sentir as coisas escuras e com um brilhinho pequeno de areia molhada no sol. Segredo que não é nem de palavra, mas que você cuida comigo e guarda pequenininho numa caixinha. E ninguém pergunta o que é porque sabem que segredo assim, não se conta, não se mostra, não é de ver nem é de palavra. Mas só de olhar já se sabe que nós dois temos um segredo de silêncio.

autor desconhecido


amar cria raiz, sim. cria, independentemente de ser verbalizado. basta sentir o amor para que fiquemos dependentes dele, uma dependência boa, daquilo que nos faz sentir vivos.

martha medeiros

sábado, 7 de julho de 2012

sintonia para pressa e presságio


escrevia no espaço.
hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

leminski

ditirambo


meu amor me ensinou a ser simples
como um largo de igreja
onde não há nem um sino
nem um lápis
nem uma sensualidade 

oswald de andrade

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...