terça-feira, 31 de maio de 2011

sábado, 28 de maio de 2011

ascensão



Depois que iniciei a minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até a ausência da voz ?
Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo -
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes -
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras coisas do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!





manoel de barros

gargalhada



Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias.
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos deuses
ainda não criara o mundo.





guimarães rosa

bilhete com endereço



...
Escuta!
O que eu quero,
O que eu amo,
O que desejo em ti,

É o teu calor animal!...





mario quintana

sexta-feira, 27 de maio de 2011

recado falado



Haverá sempre, sempre entre nós esse digo não digo
Esse T de tensão, esse A de amor ressentido
Qualquer coisa no ar, esse desassossego
Um recado falado, um bilhete guardado, um segredo
Um desejo no lábio, um carinho travado, um azedo
Qualquer coisa no ar, esse desassossego
No metrô da saudade seremos fiéis passageiros
Um agosto molhado, um dezembro passado, um janeiro
Qualquer coisa no ar, esse desassossego
Cessará finalmente entre nós esse mito, não minto
Esse I de ilusão, esse T de tesão infinito
Qualquer coisa no ar, esse desassossego.




alceu valença


quarta-feira, 25 de maio de 2011

gosto quando te calas


Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.



Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.


Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.


Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.


Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.


Pablo Neruda

cinco razões pelas quais vale a pena ser poeta



penso que não tive escolha
fui escolhido e gostei da escolha
faço o que sonho
faço o que gosto
sou um pouco irresponsável
com os passarinhos, isto seja:
sou livre
amo a palavra.



manoel de barros

wake up alone - ganhei para o dia , êxtase.



- nem tanto suas palavras, sim suas entonações e toda essa melodia com esse ar delicioso de anos 50...

segunda-feira, 23 de maio de 2011

meu amor


agora é tarde
e o final não se reparte
o que hoje é revolta
amanhã será
pó e arte.



ana caetano

domingo, 22 de maio de 2011

bicicletas, bolos e outras alegrias



É simpatia contra dispersão
Rejeição, desilusão
As sete ervas dos bons caminhos
Arruda ajuda
Quem disse que faniquito não cura
Quem disse que açúcar e afeto não podem curar

...




vanessa da mata

quinta-feira, 19 de maio de 2011

os espelhos


O que é um espelho? Não existe a palavra espelho - só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. - Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambólica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente "ad infinitum", liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. - O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. - Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. - E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. - A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como água se derrama. - O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestí­gio da própria imagem - então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro - e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante - nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difí­ceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.



clarice

terça-feira, 17 de maio de 2011

bem aventurados



Bem-aventurados os pintores escorrendo luz
Que se expressam em verde
Azul
Ocre
Cinza
Zarcão!

Bem-aventurados os músicos...
E os bailarinos
E os mímicos
E os matemáticos...
Cada qual na sua expressão!

Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata alheia...

A ingrata linguagem dos homens!



mario quintana

domingo, 15 de maio de 2011

senhora da rocha


Tu não estás como Vitória à proa
Nem abres no extremo do promontório as tuas asas
Nem caminhas descalça nos teus pátios quadrados e caiados
Nem desdobras o teu manto na escultura do vento
Nem ofereces o teu ombro à seta da luz pura

Mas no extremo do promontório
Em tua pequena capela rouca de silêncio
Imóvel, muda inclinas sobre a prece
O teu rosto feito de madeira e pintado como um barco

O reino dos antigos deuses não resgatou a morte
E buscamos um deus que vença conosco a nossa morte
É por isso que tu estás em prece até ao fim do mundo
Pois sabes que nós caminhamos nos cadafalsos do tempo

Tu sabes que para nós existe sempre
O instante em que se quebra a aliança do homem com as coisas
Os deuses de mármore afundam-se no mar
Homens e barcos pressentem o naufrágio

E por isso não caminhas cá fora com o vento
No grande espaço liso da luz branca
Nem habitas no centro da exaltação marinha
O antigo círculo dos deuses deslumbrados

Mas rodeada pela cal dos pátios e dos muros
Assaltada pelo clamor do mar e a vemência do vento
Inclinas o teu rosto


Imóvel muda atenta como antena.




sophia andresen

para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber XVI





Entra um chamejamento de luxúria em mim:
Ela há de se deitar sobre meu corpo em toda
a espessura de sua boca!
Agora estou varado de entremências.
(Sou pervertido pelas castidades? Santificado
pelas imundícias?)
Há certas frases que se iluminam pelo opaco.





manoel de barros - em 'o livro das ignorãças'.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

para que leda me leia


 para que leda me leia 

precisa papel de seda

       precisa pedra e areia 

para que leia me leda


       precisa lenda e certeza 
precisa ser e sereia
       para que apenas me veja

       pena que seja leda 
quem quer você que me leia


leminski

tão sutilmente em tantos breves anos





Tão sutilmente em tantos breves anos
foram se trocando sobre os muros
mais que desigualdades, semelhanças,
que aos poucos dois são um, sem que no entanto
deixem de ser plurais:
talvez as asas de um só anjo, inseparáveis.
Presenças, solidões que vão tecendo a vida,
o filho que se faz, uma árvore plantada,
o tempo gotejando do telhado.
Beleza perseguida a cada hora, para que não baixe
o pó de um cotidiano desencanto.

Tão fielmente adaptam-se as almas destes corpos
que uma em outra pode se trocar,
sem que alguém de fora o percebesse nunca.





lya luft

poema do nadador





A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna
a água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Senão, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.






jorge de lima

sábado, 7 de maio de 2011

a janela encantada




A vida sempre foi boa comigo.
Quando soube que o meu coração
estava carregado de sombras,
e que ele só se alimentava de luz,
abriu uma janela no meu peito
para que por ela possam entrar
o resplendor do orvalho,
o fulgor das estrelas
e o invisível arco-íris do amor.




thiago de mello

sexta-feira, 6 de maio de 2011

terceiro dia - os deslimites da palavra

3.1



Passa um galho de pau movido a borboletas:
Com elas celebro meu órgão de ver.
Inclino a fala para uma oração.
Tem um cheiro de malva esta manhã.
Hão de nascer tomilhos em meus sinos.
(Existe um tom de mim no anteceder?)
Não tenho mecanismos para santo.
palavra que eu uso me inclui nela.
este horizonte usa um tom de paz.
Aqui a aranha não denigre o orvalho.



manoel de barros em 'o livro das ignorãças'.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

sugestão



Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.



cecília meireles


 
mesmo quando chove ou o céu tem nuvens (os dois amantes) sabem sempre quando a lua é cheia. e quando mingua e some, sabem que se renova e cresce e torna a ser cheia outra vez e assim por todos os séculos e séculos porque é assim que é e sempre foi e será.
 

caio f.

terça-feira, 3 de maio de 2011

amor


Quero um amor alucinado, depravado, tarado.
Amor inteiro, de corpo-a-corpo, enlaçados.
Amor sem reserva, que a tudo se entrega, lancinante.

Quero você assim, abrasada, pedindo gozo,
Eriçada, ronronando feito gata, tesuda.
Seus seios túmidos, me furando o peito.

Quero você, pentelho contra pentelho, roçantes.
Carne encravada na carne. Bocas coladas,
Babadas, meladas, sangrando sufocadas.

Quero amar você tão bichalmente que urremos.
Eu, penetrando rasgando. Você me comendo furiosa.
Nós dois fundidos, unidos, soldados.


Você e eu, nós dois, sós, neste mundo dos outros.




darcy ribeiro na obra 'eros e tanatos'.

passarinhos

  Despencados de voos cansativos Complicados e pensativos Machucados após tantos crivos Blindados com nossos motivos Amuados, reflexivo...